Roxa xenaider

terça-feira, novembro 29, 2005

...eu SEI O QUE SE PASSAVA

Acabo de ler, leio sempre, a crónica de Isabel Stilwell na Notícias Magazine de 27/11, "Não sei o que se passa". Pois "eu sei o que se passava" em Angola onde vivi de 1950 e 1979, e a que bem se ajustava a crónica que li. Por força, aliás bem gratificante, da minha actividade de profissional de Cinema percorri toda a Angola de lés a lés durante aqueles curtos trinta anos. Fui muitas vezes testemunha de casos semelhantes. Ainda hoje me lembro, do primeiro caso que me foi dado ver e que me chocou muito, talvez por ainda não estar "anestesiado". Foi no interior do Planalto Central num local cujo nome não recordo – já lá vão mais de cinquenta anos - que, seguindo por uma estrada do mato deparou-se nos uma ponte com cerca de sete oito metros, das que eram da responsabilidade das Autoridades Administrativas, tendo poucos metros ao lado, uma outra abandonada a meio da construção. Perguntei ao meu acompanhante porque teria sido deixada aquela para se fazer outra igual quase ao lado ? "Porque aquela estava a ser construída pelo Administrador que entretanto foi substituído pelo actual". Isto foi me respondido com toda a naturalidade pelo Aspirante que mais tarde viria a ser também Administrador. Entretanto fui constatando coisas semelhantes, mas a anestesia já se tinha apoderado de mim. Para finalizar: um governante logo que chegou a Luanda mandou refazer toda a decoração das salas do Palácio: Indo mais fundo, no ano em que cheguei à Colónia de Angola, a designação passou a ser Província de Angola. Não se viu nada de nota a não ser nos documentos oficiais e na Imprensa Os Distritos passaram a Províncias. Mais tarde, já no Governo de Sá Viana Rebelo, o Enclave de Cabimda passou a ser designado por Distrito de Cabinda. Mas lá ficou encravado entre o Congo Kinchaça e o Congo Brazaville, e só lá se chegava de avião ou fazendo uma viagem de muitas centenas de quilómetros, parte deles em território estrangeiro. Por aqui me fico, até que tenha outro lampejo de memória.

terça-feira, novembro 22, 2005

AS NESPERAS

Filmavam-se cenas do Bocage no Palácio dos Condes de Oeiras. Este filme foi feito em duas versões, portuguesa e espanhola. Alguns dos personagens eram interpretados pelos mesmos actores, quer se tratasse de uma ou de outra versão. Mas o personagem principal, o Bocage, era interpretado por Raul de Carvalho, e em Las três Gracias, versão espanhola, pelo actor Alfredo Mayo, também espanhol, como era lógico.
O filme durou, se bem me lembro, quase oito meses de trabalho. Havia muitas, mulheres bonitas, não só entre as actrizes, como na figuração, pelo que houve tempo para alguns “romances” mais ou menos fugazes. Um dos mais escondidos ,( com o rabo de fora)”, era o do Alfredo Mayo com uma actriz portuguesa, Mulher muito bonita e, se já nesse tempo se usasse o termo, muito “sexy”. Uma tarde, após o almoço, estava Leitão de Barros meio sentado, meio deitado na sua cadeira doutoral, rodeado por parte da equipa já preocupada com a demora de alguns dos artistas. De repente, pela Porta do jardim entra, afogueada e quase a correr, tal actriz “sexy” que pára surpreendida com a presença de quase toda a equipa e do Realizador. Vinha com a maquilhagem esborratada, o baton espalhado pela cara toda. Tenta desculpar-se: “Desculpe sr Dr., e´ que estive ali na horta a comer umas nêsperas e” “está bem, vai-te lá arranjar”.Diz-lhe o Leitão de Barros com um sorriso irónico.. Segundos depois, entra pela mesma porta, o Alfredo Mayo com a maquilhagem no mesmo estado, e tenta explicar-se. O Realizador interrompe-o: “ já sei, já sei; estiveste a comer nêsperas. Vai-te lá arranjar.” Tinha um grande senso de humor, intervalados com explosões de cólera que o levavam por vezes a despedir pessoas, quase sem razão. Neste caso, dada a posição dos apreciadores de nêsperas, só lhe restava o caminho do Humor.

segunda-feira, novembro 21, 2005

QUADRAS SOLTA

Quadras
S
o
L
T
A
S . . . !

Temia que alguém me visse
neste meu triste viver.
E com pena me pedisse:
“vê se deixas de beber”

Ora eu que nem água bebo,
Senão a que o vinho traz.
Porque me tomam: não percebo,
Por um bêbedo contumaz ?

Mas não me vou ofender
com amigos com quem topo.
Sempre algum hà-de aparecer
que queira pagar um copo.

Hoje foi dia de azar.
Aquele que pude ver
disse, mesmo sem parar:
“já deixas-te de beber?”

sexta-feira, novembro 18, 2005

SAÚDE PÚBLICA

Mal acabei de escrever “Carapaças,” veio-me ao pensamento uma terrível frase da Médica no Hospital de SãoPaulo, face às criancinhas muribundas: “ têm tétano umbilical...não há quem olhe por isto...e não podemos fazer mais do que recolher os corpos dos que deixaram de sofrer” Esta frase na sua trágica verdade lembrou-me o que eu, algum tempo antes, tinha acompanhado. Um médico,(mais uma vez a minha memória) me encarregou de o acompanhar para fotografar algumas crianças nas quais estava a ser testado um tratamento contra uma doença que, (se bem escrevo) se chamava Corchiorcore. Pelo menos assim me soava ao ouvido e assim a pronuncio e escrevo. Tratava-se de uma despigmentação que por vezes atingia grandes partes do corpo, sendo as mais visíveis as do rosto e do pescoço. Pelo menos foram as que mais pude ver. Então a minha colaboração constava tão simplesmente de fotografar as crianças doentes, nos Muceques de Luanda ou nas imediações de Catete a cerca de setenta quilómetros da Cidade. Voltava a fotografá-las um mês depois e constatava com admiração as manchas de despigmentação haviam desaparecido completamente. Que “mezinha”, que tratamento milagroso que em tão pouco tempo produzira resultados tão evidentes ? Pois muito simplesmente uma porção diária de LEITE. O Estudo fora concludente, mas mais uma vez... "não houve quem olhasse por isto".
Ao longo dos muitos anos em que percorri Angola de lés a lés continuei a ver crianças e mesmo adultos com manchas de despigmentação. Foi nos povos do Sul, os mais pobres e os mais afastados das zonas mais habitadas ( ia escrever, mais civilizadas) que não encontrei casos de despigmentação. Ali a base de alimentação era o leite e o "iogurte" primitivo. Viviam da pastorícia e não abatia os seus bois que eram a sua riqueza. Finalmente encontrara neste Mundo um sítio e umas pessoas a quem a Riqueza não fazia subir o Colestrol.

terça-feira, novembro 15, 2005

Carapaças

Existem inúmeros e diversos tipos de carapaças, desde a do caranguejo à tartaruga, da tartaruga, às... pessoas: para o bem e para o mal. Comecemos pelo mal que é uma forma de acabar em bem, ou o que Bem nos parece.

Contradições
“Os olhos espelho da Alma”
Quão falso é este aforismo!
Quanta beleza não esconde
o mais profundo egoísmo
-0-
Rostos há, que sob a tez
de luminosa brancura
albergam a mesquinhez
da alma mais vil e escura.
-0-
São estas contradições
que provam que quem vê caras,
também vê os corações
em que as virtudes são raras
-0-
Há bizarras criaturas
vivendo a bater no peito,
que são falsas e perjuras
e pecam de todo o jeito.
-0-
Do alheio sofrimento
Simulam sentir a Dor.
Mas é falso, é fingimento.
Não trazem Paz nem Amor.

Também há, felizmente, o outro lado da moeda bem mais brilhante e genuíno. Quase sempre escondido atrás de uma “carapaça” de fingida dureza, tanto mais difícil de afivelar quanto mais bondade se abrigar no coração. Vou contar um caso exemplar do que atrás ficou dito. Estava filmando um Documentário sobre os Serviços de Urgência do Hospital de São Paulo, em Luanda. O Director era um Cirurgião meu Amigo, Dr. Aristides Bonfim. Pessoa com ar desprendido, que quando lhe perguntavam: " Ó Dr. O que é isto aqui? " respondia: "é a barriga." Se fosse caso disso, é evidente. Mas quando falava connosco referia-se sempre aos "doentinhos" Uma noite em que o fui procurar à Casa de Saúde onde estava de Serviço, encontrei-o a falar com um internado. Depois de me ter atendido, fez questão de vir comigo até ao exterior. Presumi que me quisesse dizer algo sobre o meu mal (de que já me não recordo) mas não, veio, com voz comovida dizer-me que aquele doentinho com quem estivera a falar e a dar falsas esperanças, só teria uns poucos dias de vida. Com isto, deu-me as boas noites e voltou para dentro. Viera desabafar a sua angústia. Outro caso bem mais triste e doloroso, vou recordar, não sem antes me penitenciar por não ter guardado na memória o nome da pessoa protagonista deste episódio. Sirva-me ao menos de atenuante a minha fraca memória para nomes. Ao tempo, anos sessenta do século passado, trabalhava nos Hospitais de Luanda um casal de médicos; ele cirurgião de reconhecida competência. Ela de medicina geral. Ele era alto e magro de aspecto frágil e aparentava andar pelos sessenta anos. Ela alta e forte, andaria pelos cinquenta. Prestava serviço no Hospital de São Paulo por cujos corredores se deslocava em grandes passadas, falando energicamente e em tom autoritário. Mas não era de modo nenhum antipática.Tive ocasião de verificar o retrato que procurei traçar, aquando das filmagens de um Documentário sobre os Serviços de Saúde, em que me guiou por tudo o que era "filmável". Sempre fazendo referência às necessidades e faltas de vária espécie, sem baixar o tom de voz e sem fugir à palavra certa. Em dada altura, passando nós pela porta de uma dependência de onde vinha o choro de crianças, travou-me o braço e numa voz que eu lhe desconhecia, diz-me: "venha ver um horror". Entramos e, de entre os horrores que mais tarde presenciei durante as Guerras Colonial e Civil, não encontrei nada que se comparasse. Em cima de um balcão de mármore estava uma dezena (?) de bébés, creio que quase todos nus, não tive coragem de verificar. Soltavam guinchos dilacerantes que me remetiam para vinte dolorosos anos passados. "Têm tétano umbilical, diz-me com uma voz comovida, não há quem olhe por isto. É o resultado dos partos gentílicos em que oumbigo dos recen-nascidos é recoberto de capim amassado com fuba, óleo de palma, e tudo quanto as "parteiras" entendem, juntamente com umas rezas. E aqui estão, a morrer num sofrimento como você pode ver e sem que nós possamos fazer mais do que recolher os corpos daqueles que já não sofrerão mais." Já não filmei mais nada naquele dia. Acompanhou-me em silêncio até à porta, apertamos as mãos e parti, só fui capaz de voltar passados alguns dias. Tornei a encontrar a Drª com a sua voz autoritária e a sua passada forte. Vinha tranquila e firme. Mas eu pude ver dentro daquela “Carapaça” rígida, um coração sensível ao sofrimento que a rodeava, e que sentia tanto como se fosse o seu próprio.

sábado, novembro 05, 2005

o caricaturista e o pato bravo

Anos 40. Feira Popular de Lisboa no Parque José Maria Eugénio. Hoje Parque da Gulbenkian. Talvez não haja –não pode haver ninguém desse tempo – nem eu, a rondar os noventa, me lembro. Sei por ouvir contar, mas é fácil confirmar no Museu da Cidade. No sítio daquele Parque Muralhado existia uma quinta do proprietário que lhe deu o nome. Uma parte da quinta ficava fora das portas de Lisboa, e a outra do lado de dentro. Era a propriedade atravessada por um riacho que corria de fora para dentro. Nesse tempo, e disto ainda eu me lembro, certos produtos pagavam direitos para entrar na cidade, entre eles carne, água-ardente, etc.Fácil era por na água uns barris que, durante a noite, adormeciam no exterior e acordavam no interior da quinta. Daí o nascer da Muralha e do palacete. Feito o desvio, entremos no assunto. Na década referida costumava eu frequentar assiduamente a Feira, e uma noite assisti a um caso que muito me penalizou. Costumava andar de Restaurante em Restaurante, de Bar em Bar, um homem com aspecto de muito pobre, sobraçando alguns cadernos. Acercava-se dos clientes e perguntava com uma voz difícil de asmático ou cardíaco: "desejais a vossa caricatura?" Poucas vezes vi alguém aceder ao doloroso pedido. Mas uma noite, numa das esplanadas de restaurante, uma longa e ruidosa mesa encabeçada por um ainda mais ruidoso homem forte e de ar próspero, tipo "pato bravo" que não escondia, antes fazia questão de que se notasse a sua qualidade de anfitrião, pagador. Aproximou-se o caricaturista com a pergunta sacramental. E o "pato.bravo" com ar importante e magnânimo: "faça-me lá a caricatura". E continuou a comer, a beber e a falar com a boca cheia, também, de calinadas. Acabado o trabalho, o artista entregou a obra ao cliente. Este olha atentamente o papel solta uma gargalha estrondosa e exclama: "É pá! isto vai já pr’ró Porto. Há lá um gajo meu amigo qu’é tal e qual esta cara." Não sei o que teria sentido o pobre caricaturista. Provavelmente, já estaria calejado com brutalidades semelhantes, o seu sentido de dignidade estaria adormecido por elas. E a necessidade de sobreviver, sobrepunha-se a tudo. Ainda hoje me sinto constrangido com esta recordação.