Roxa xenaider

sábado, janeiro 28, 2006

De como a Humanidade se
auto extinguiu e como
conseguiu recuperar-se.

--o0o--
Não se sabe em que Século
se deu o feliz evento
nem em que data se deu
tal desaparecimento.
Os pergaminhos e crónicas
de que há conhecimento
são do Século vinte e um,
uma data tão recuada
q’ não deixou vestígio algum
que permita ser estudada,
e dá aso a especulações.
Já só existiam velhos,
E das jovens gerações
Só restava um exemplar.
P’garam então numa anciã
Que ao jovem foram juntar
Num exótico mano a mano,
que com Pompa e Circunstância,
como em Coliseu Romano,
realçava a importância
que tinha para a Humanidade
e sua sobrevivência.
Mas“ novo não rima com velha”
e uma erétil disfunção,
veio deitar tudo por terra,
e acabar com a ilusão
de manter a Humanidade
com todos os seus defeitos
e faltas de qualidade.
E tudo voltou aos bichinhos,
lesmas e mais rastejantes,
ancestrais dos seres humanos,
como estes, repugnantes.
Na escala da evolução,
Será o Delphinus delphis
a salvar a situação
e formar um novo Estado,
isto se não o matarem
os efluentes do Sado.
Súbito acordei do sonho,
E encarei a realidade.
E esta é, ao que suponho,
a mesma des´Humanidade
que já encontrei ao nascer.
- Como uma fatalidade,-
cá deixarei ao morrer.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

terça-feira, janeiro 24, 2006

O Marcos Salomónico

O Marcos do Vale foi ao longo de toda a minha carreira profissional, desde "claquete boy" a
operador, o terceiro assistente de imagem, - ao tempo chamavam-se serventes - isto é o que fazia o trabalho pesado – carregar com a câmara de estúdio que andava pelos seus quarenta ou cinquenta quilos. Era um rapaz fortíssimo que subia escadas de mão com a câmara ao ombro como se nada fosse. A equipa de imagem, muitas vezes composta pelo Aquilino Mendes, operador, o Perdigão Queiroga ( antes de ser realizador), eu próprio e ainda o Marcos que por ser funcionário da Tóbis transitava de umas equipas para outras. Mas na nossa era sempre certo.Tinha uma meia dúzia de anos mais do que eu e o Queiroga que tínhamos a mesma idade. Sempre nos tratou por tu, mesmo com Perdigão Queiroga enquanto realizador. Analfabeto, ou quase, mas inteligente e com grande senso de humor, o Marcos, apesar da sua grande força era um "paz de alma." Tinha começado a trabalhar nas obras de construção do Estúdio; continuou como guarda, e a Mulher, a Felismina como empregada da limpeza. Moravam numa casa da Tobis na parte antiga da Quinta das Conchas onde estava inserido o Estúdio. Dizem que Deus não dá tudo à mesma pessoa, talvez por isso tinha ele um "pequeno senão:" bebia um "pouco" demais. Acho que era coisa de família,: o irmão mais velho - um excelente sapateiro,- era um beberrão notável ali no Lumiar. Chamava-se Armando do Vale. ( a propósito dizia Leitão de Barros: "calculem que puseram a este homem o nome do galã da “Dama das Camélias, Armand Duvalle, e sai-nos um sapateiro beberrão!") Tínhamos entre nós, na "Imagem" alguns sinais de código, por exemplo quando nos queríamos afastar para ir beber água, levantávamos o polegar apontar para cima, e se era o contrário de beber, virávamos o polegar para baixo. Um domingo filmámos cenas para o “Pai Tirano” nos Armazens Grandela. O Marcos já tinha feito várias vezes o sinal de polegar para baixo durante a manhã, até que o Queiroga lhe diz: " não vais mijar mais vez nenhuma que daqui a bocado estás bêbedo!"Após este longo intróito de apresentação do personagem, cumpre-me justificar a razão do termo “Salomónico” incluído no título. É o que passo a fazer. A dada altura começou a frequentar a casa do Marcos e da Felismina, que como já disse moravam dentro da Tobis, uma moça do Lumiar, mãe solteira, (anos 30, nesse tempo, "mãe solteira" tinha outra designação) com um bébé de colo e que lhes pedia de quando em vez para tomarem conta do filho durante umas horas enquanto procurava emprego, ou por qualquer outro motivo. Até que um dia deixou a criança e nunca mais apareceu. Levou completo sumiço. O Marcos e a Mulher continuaram com o inocente que foram criando, mesmo sabendo quem era o pai que vivia também ali para a zona saloia e que nunca procurou saber nada do filho.
Não me lembro do nome do garoto. (curioso, lembrei-me neste preciso momento, setenta anos depois, Rogério. assim se chamava o garoto) que convivia muito com todos nós. Era para todos os efeitos "o filho do Marcos." A criança completou a Instrução Primária e, como era fatal naquela idade – 12 ou 13 anos - nas classes pobres e naqueles tempos, foi aprender um ofício.
Estava naturalmente indicado que, tendo um "tio" sapateiro fosse trabalhar e aprender com ele. E assim começou a ganhar o seu – pouco – dinheirinho. Pouco era certamente, mas mesmo assim o seu "perfume" foi suficiente para chegar às narinas do pai biológico que tomado de um súbito amor paternal, vá de se apresentar aos Marcos reclamando a custódia do filho que aliás, nunca perfilhara nem sequer visitara. Aí, o"Paz d'Alma" que era Marcos, passou-se de todo do juizo e, com o filho ao lado, vira-se para o homem e diz-lhe: "Olha lá! Você vai levar o rapaz, mas antes, eu agarro nele pelas duas pernas e – fazendo um gesto largo – rasgo-o ao meio e dou-lhe com os bocados no focinho até o desfazer a ele e a você!" Perante esta Salomónica decisão o homem desapareceu prudente e definitibamente.
E a Felismina e o Marcos ficaram com o FILHO.

7FANTASMAS
Tal como com os milagres também não acredito em fantasmas...mas, o melhor é eu contar a estória que foi assim: ao longo de vários anos de trabalho na Tobis e na Lisboa Filme tive um grande Amigo, Joaquim Santos que era o Chefe Electricista e Iluminador e que sempre deu grande apoio aos Operadores. Pois o Santos que era bastante mais velho do que eu tinha um filho o Mário com cerca de dezoito anos, e que estava tuberculoso. O moço ia muitas vezes ao Estúdio e tinha sempre uma disposição risonha e brincalhona. Eu tinha na altura vinte e seis anos –isto passava-se em 1942- e nessa época a diferença de idades era muito respeitada e fazia do Mário uma quase criança e de mim, sem dúvida nenhuma um adulto, aliás já casado e com filhos. Mas tinha uma boa relação com o moço, e gracejávamos muito um com o outro . Quando nos encontrávamos ele dizia risonho com uma voz de adolescente, meio trocista:"“Bom dia Senhor João Silva! – Boa noite Senhor João Silva!" E assim foi sendo até que o inevitável aconteceu e o Mário deixou-nos.
Como já disse isto passava-se em 1942. Tínhamos acabado as filmagens de "Fátima Terra de Fé"e eu que tinha assumido as funções de assistente de montagem do Jorge Brun do Canto, - que na ocasião estava doente. - ficava até tarde no Laboratório da Lisboa Filme onde àquela hora além do velho guarda só estava eu a preparar as bandas de mistura para a gravação da cópia final. Era época de restrições por causa da guerra, era difícil arranjar transportes eportanto tinha de sair a tempo de apanhar o último eléctrico do Lumiar para o Arco do Cego; ali apanhar o último para Santo Amaro, apear-me no Terreiro do Paço e ir a pé para casa, junto a St. Apolónia. Por isso saía do Laboratório pela meia noite, passava por um local muito escuro sob um renque de árvores antes de chegar à Alameda das Linhas de Torres onde passava o carro. Ora numa daquelas noites, ainda com a morte do meu Amigo na minha lembrança, vejo à minha frente, no escuro, uma figura em tudo igual à do Mário que ao mesmo tempo que me dizia com voz de adolescente: "Boa noite Senhor João Silva", passava por mim. Eu estaquei! - acho mesmo que não me poderia mexer. A "figura" parou também e eu, não sei como, voltei-me para trás e tive a "coragem" de meter a cabeça debaixo do chapéu e... não era o Mário, como é óbvio ( HOJE! ) Agora a explicação: era o Manuel Barão assistente de som e, filho do Sr.Barão que era o Fiel do Estúdio e morava mesmo dentro da Quinta. Eu sempre o tinha visto de fato macaco. Naquela noite ele tinha ido ver a namorada ao Lumiar, por isso se vestira a preceito. A juventude dessa época não se vestia como a de hoje em que cada um veste como quer isto é, cada um pior do que o outro. Naquele tempo todos (os que podiam) usavam casacos ou sobretudos, como era o caso, com os ombros muito direitos chapéu amolgado em cima com a aba descida sobre os olhos Tudo isto aliado à lembrança recente da morte do Mário me levou àquela ilusão. Mas agora vamos imaginar que eu não tinha tido a "coragem" –(porque eu estava gelado) de parar, olhar para trás e meter a cabeça debaixo da aba do chapéu. Porque eu não fiz isso raciocinando. Foi tudo muito rápido e instintivo. Talvez sentisse que o Mário tinha sido meu Amigo e nada de mal me aconteceria. Mas voltando à "coragem" se eu a não tivesse tido e seguisse o meu caminho, O que é que eu diria hoje quando ouvisse alguém dizer: "eu não acredito em fantasmas ?" Pois sim, isso dizem Vocês, mas eu é que sei!. E, quase com certeza nunca viria a contar esta estória. E por aqui me fico até outra experiência.

COBRAS, cobras e cobrinhas

Parece que não serei muito original se disser que tenho horror a COBRAS, cobras e cobrinhas.Felizmente que em 30 anos de Angola não vi muitas. Mas de três delas lembro-me muito bem. A primeira era uma gibóia que numa estreita picada perto de Novo Redondo se atravessou à frente da carrinha. Passei-lhe por cima - não o poderia ter evitado - mas não lhe pude ver, ao mesmo tempo, a cabeça e a cauda, tal o seu comprimento. Era mais comprida do que a largura da picada. Não sei o estrago que lhe causei, se é que causei; ñão parei para ver.A segunda era uma cobrinha insignificante no tamanho, mas como em tantas outras coisas,também nas cobras - ou principalmente nestas - tamanho não é documento. E foi assim: desloquei-me várias vezes a Cambambe durante a construção da Barragem que acompanhei durante muito tempo em trabalho de filmagem de um documentário. Ficava sempre instalado num dos vários apartamentos de construção provisória,pequenos mas confortáveis e que tinham até ar condicionado que na ocasião a que me reporto estava desligado. Era tempo de "Cacimbo". Como já disse os quartos eram pequenos; entre a cama e a parede cabia apenas a mesa de cabeceira. Por baixo da janela ficava o aparelho de ar condicionado, e quando me deitei vi uma cobra pequenina e fina a subir pela parede. Peguei na faca de mato que sempre acompanha quem anda pelo dito. Mas já não cheguei a tempo, ela entrara para a grelha do aparelho e ficara a espreitar por um dos quadradinhos. Fiquei com a luz acesa, deitado de lado, com a mão esquerda debaixo da almofada,como ainda hoje é meu geito. e a faca em cima da mesinha, decidido a cortar-lhe a cabeça mal a deitasse de fora. ...de repente era dia, a luz continuava acesa, a mão estava debaixo da almofada, e a faca estava na mesinha, só a cobra não estava lá. É certo que eu dificilmente consigo vencer o sono ( se a primeira vez que adormeci, a minha Mãe não me tivesse acordado para me dar de mamar ainda hoje estaria a dormir e com umas grandes barbas, que aliás já tenho ). Mas voltando à estória: se eu tivesse visto a cobra a sair, tê-la-ia morto. Mas ela viu-me adormecer e não me fez mal algum. Moral da estória: o homem é "pior q'às cobras."
A outra estória é mais “dramática”. Eu conduzia uma carrinha de 500 quilos de caixa aberta e já bastande usada, por uma estrada de terra batida quando passei por cima de uma cobra já de ”bom” tamanho. Olhei pelo retrovisor mas com a poeirada não consegui ver nada. Já tinha ouvido dizer que em circunstâncias idênticas as cobras podem ficar presas nalgum ponto do carro. O meu tinha várias "lesões" entre elas buracos junto dos pedais. Eu estava, como quase sempre, de calções e botins pela canela. De repente começo a sentir uma coisa macia e roçar-me na perna direita. Fiquei gelado mas não perdi a calma. Sabia que não podia fazer movimentos bruscos e não fiz. Só aliviei o acelerador. Aquilo deixou de me tocar na perna. Com um olho meio fechado atrevi-me a olhar para baixo. O meu muito velho chapéu de feltro, de abas largas, tinha-me roçado nas pernas ao cair do banco a meu lado e estava no chão. O meu medo das cobras fez o drama.

Búfalos

Em Moçambique, na Zambézia , nos Tandos de Marromeu procuramos – e encontramos – uma grande manada de búfalos. Antes de mais devo explicar o que são os Tandos. São enormes planícies inundadas pelo Rio Zambeze na época das chuvas. Durante o "cacimbo" ficam secas e quase se lhes não vêem os limites, tal a extensão cortada em muitos pontos por estreitas faixas pantanosas onde crescem "papiros" que, dobrados, servem de precárias pontes. Como halmente mandaram-se os pisteiros localizar a manada e depois irem por de trás dela fazer barulho e encaminhá-la para o local onde nos encontrávamos. Claro que isto não foi assim tão simples pois foi necessário escolher o sentido do vento que tinha de soprar deles para nós. Isso conseguido, escolhemos um "corredor" de cerca de 50 metros de largura e colocamo-nos os dois operadores, o Alfredo e eu cada um de seu lado. Portanto o Alfredo filmaria os búfalos correndo da esquerda para a direita, e eu ao contrário, da direita para a esquerda. Finalmente os animais apareceram numa frente muito larga, de muitas dezenas de metros. À frente, um pobre antílope, um Kudo, assim me pareceu, vinha sendo empurrado por aquela verdadeira barreira de búfalos. Quando deram por nós, pararam, mas a barulheira que os pisteiros faziam atrás deles, gritando, batendo em latas não lhes deixou escolha e então encaminharam-se sempre a galope para a única passagem livre, o corredor entre pântanos. Levaram a passar o tempo de se gastar um carregador de filme de 60 metros ou seja: dois minutos. O Gustave Guè, o caçador que nos apoiava calculou que teriam passado mais de 2000 cabeças. Mas este longo, e talvez enfadonho intróito serve apenas para nos trazer aqui: quando tirei o olho na máquina vejo ali a uns 20 metros o grupo de pisteiros de roda de um búfalo pequeno talvez um pouco maior que um cão "Grand-Danois". Estavam de catanas na mão dispostos a matar o animal. Dei um berro:" É! Não mata nada!" e dei uma corrida até eles. O bicho que ainda tinha o cordão umbilical, embora já seco, mas que já era búfalo, punha uns olhos furiosos e investia com os pisteiros Eles riam-se muito e desviavam-se. Eu achava aquilo ridículo, fugir de um bichinho tão pequeno; até que ele encarou comigo e aí vem direito a mim que o esperei para lhe fazer uma fèstinha. Pois foi. Apanhou-me de lado a meio da coxa direita e pregou comigo no chão para gáudio dos meus colegas de equipa e principalmente dos pisteiros que não pararam de rir todo o resto do dia. Eu também me ri. O que é que eu podia fazer além, de me limpar da lama!? Tomamos o nosso caminho que era o mesmo que a manada tinha seguido mas que já não conseguiamos ver e o pequeno búfalo continuou connosco. Segundo o Guè esse era o procedimento natural de qualquer animal quando perde as referências; junta-se ao que encontra. Mas passado algum tempo, põe as narinas no ar e começa a correr e afastou-se. Tinha encontrado o cheiro da manada e, segundo o caçador, também a mãe já devia vir ao seu encontro . Quanto a ele deve ter ido contar à mãe que tinha dado uma marrada num branco.

A pobrezinha

No princípio dos anos 80 comprei um blusão tipo "jean" que passei a usar quase permanentemente com umas calças da mesma marca. Só que tinha mais do que um par de calças, e o blusão era filho único pelo que a dado tempo já estava um tanto fanado. Mas eu não dava por isso. Ora uma tarde, ao regressar do trabalho, subindo as escadas do Metropolitano no Areeiro, vi uma pedinte sentada nos degraus. Tinha um ar limpo e arrumado parecendo mais do tipo "pobreza envergonhada". Tirei umas moedas do bolso e tentei dar-lhas. Eis que ela levanta os olhos, encara-me e afastando as moedas diz-me: "são para o senhor, são para o senhor", Fiquei meio atoleimado,insisti para que ficasse com as moedas e segui o meu caminho. Mas olhei para o meu blusão e reparei que estava já muito desfiado nos punhos e nos bolsos além da cor desbotada; acho que parecia mesmo um mendigo, ou, pelo menos um desmazelado. Nunca mais o vesti. Mas como a minha Mulher não se desfaz de nada ( conserva-me há mais de 56 anos ) também o blusão anda por aí pendurado em qualquer canto. Mas com a crise que se anuncia, talvez venha a ter de o vestir... e arriscar-me a ficar rico. Quem sabe!!!

segunda-feira, janeiro 23, 2006

O dia seguinte

Arrepiante foi um sonho que tive
numa noite após grande carraspana.
Sonhei que o grande Gama ainda vive,
tendo passado há muito a Taprobana,
erguera perante mim a hirsuta fronte,
inquirindo com voz alta e glacial:
"Quem ousou dar meu nome a mísera ponte
que não passa sequer além Seixal?
Eu, que vencendo os Mares a Índia atinjo,
não deixarei esmagar a minha saga
por qualquer pato-bravo do Montijo.
E eu digo em voz que o temor quase apaga:
"Foi um senhor audaz e persistente,
feio de cara, e pior de voz,
foi ontem mesmo eleito Presidente.
E agora, o que vai ser de Nós?
E diz o Gama em voz tonitroante.
"Livrar-vos –hei de futuro tão medonho:
num golpe de montante eu o escavaco".
Foi então que acordei do meu sonho,
e já lúcido... encarei o buraco

quinta-feira, janeiro 05, 2006

O mistério da "Canção de Lisboa"

de Cottinelli Telmo

(O texto que se segue é produto de uma recordação perdida nas profundezas da memória desde há setenta e dois anos, e trazida ao de cima pela "Canção de Lisboa" de Felipe Laféria.)
Na vida tudo, ou quase, tem explicação. Terá? A "Canção" como carinhosamente lhe chamávamos foi rodada no Verãode1933. Era consensual entre a equipe, que a fita iria ser um êxito. E tanto foi assim na estreia como continua a ser agora, setenta e dois anos depois, na Televisão.
Alguns anos após a estreia, alguém terá sugerido o lançamento do filme com cópias novas, como se de "nova estreia" se tratasse. Cotinelli Telmo não concordou com a ideia, dizendo mesmo que só deveriam pensar nisso depois da sua morte. O tempo foi passando, outros filmes se fizeram, até que em 1948, quinze anos depois, renasceu a ideia. A Tobis tinha acabado de inaugurar o seu Laboratório e deu começo aos trabalhos necessários para a impressão de novas cópias da Canção. Neste mesmo ano estava em rodagem o "Vendaval Maravilhoso" de Leitão de Barros, e em Setembro fomos filmar algumas cenas no velho Teatro Apolo entretatnto desaparecido. Numa tarde somos surpreendidos pela notícia da morte de Cottinelli Telmo. Leitão de Barros, seu cunhado, mandou suspender os trabalhos e regressamos ao Estúdio. A notícia já tinha chegado e estavam todos tão consternados como nós. Entretanto tinha surgido no Laboratório um problema grave com a Canção de Lisboa: o negativo recusava-se a passar na máquina positivadora desde aquela manhã. Já tinham titado uma cópia mas não conseguiam resolver o problema que era o seguinte: tudo correra normalmente, os filmes, negativo e positivo juntos, iam passando na janela de impressão, até que a dada altura o negativo encarquilhava, perdia o contacto com o filme positivo, não passava na janela e a máquina parava. Não interessa por agora entrar em explicações técnicas certamente fastidiosas e dificeis de ententer por quem não é do meio. Fiquemo-nos pelo acontecimento. Acontecimento este que logo provocou grande agitação entre muita gente mais sensível... e crédula.
Porquê naquele dia 18, se os trabalhos tinham começado dias antes? Porquê precisamente naquela manhã? Lembravam a recusa do Cottinelli. Os Chefes do Laboratório, os espanhóis Portillo, pai e filho estavam perplexos e preocupados, e não se arriscavam a continuar o trabalho com receio de inutilizar o negativo, tornando definitivamente irrealizável o relançamento da "Canção" que ficaria perdida para sempre. Mas as preocupações dos Portillo não eram de ordem metafísica, e procuravam afincadamente na terrena tecnologia a cura para aquele mal. E encontraram. Agora a explicação, voltando quinze anos atrás:
Fui testemunha do que vou relatar, uma vez que trabalhei na Canção como assistente de operador. O filme negativo de imagem que se utilizava era "Gaevert", uma marca belga de boa qualidade. Simplesmente a dada altura acabou aquele filme e para não interromper as filmagens, começou a usar-se outro até à chegada de nova remessa de Gaevert. Ora é geralmente sabido que um filme não é feito por ordem cronológica, seguindo o argumento passo a passo. E até uma cena em que um actor entra ou sai hoje por uma porta, pode só aparecer do outro lado, noutro cenário oito dias depois, ou até já ter lá entrado na semana anterior. Se bem se recordam do filme, lembro a cena em que a Beatriz, numa dependência da alfaiataria, discute com o Vasco, que sai, abre uma porta e entra na casa onde estão as custurerinhas pedindo-lhes apoio e até suplicando que lhe "escovem a Alma". Os dois cenários foram implantados no mesmo local com vários dias de intervalo. Isto quer dizer que o Vasco levou vários dias para franquear a porta e portanto bem pode ter sido filmado de um lado com um filme e do outro lado com outro. Se tivesse sido utilizado sempre o mesmo negativo nada de grave teria acontecido. Porém, intercalando planos de uma marca com outros de outra, na montagem final resultavam vários metros de um negativo ligados ao outro, repetindo-se esta situação ao longo de todo o Filme. Claro que estou a falar de filmes feitos à setenta anos. Hoje as coisas são diferentes. Naquele tempo fazia-se um negativo e dele se tiravam todas as cópias para exibição. O negativo era depois arquivado e assim ficaria até que mais copias fossem necessárias. Desta feita, só o foram quinze anos depois. Tanto tempo de clausura e sem os recursos actuais, causou alterações físicas como teria acontecido também a qualquer mortal nas mesma circunstâncias. E agora, após esta longa viagem pelo nascimento da Canção de Lisboa, voltemos a 1948. Depois de muitos testes de toda a sorte, os Portillos acharam o motivo de avaria: quando se metia o negativo na Positivadora para passar a imagem para positivo, (tal e qual como uma fotografia) tudo ia bem enquanto o filme era Gaever e só quando chegava um plano filmado com a outra película, esta encarquilhava tornando impossível a sua passagem entre os "pressores" que mantinham unidos o negativo e o positivo. Depois de muitas pestanas queimadas concluíram que o filme usado como recurso, tinha perdido mais humidade do que o Gaevert e por isso encarquilhava com o calor da máquina. O recurso foi banhar o filme para aumentar a humidade e portanto a flexibilidade do nitrato de que era feito o suporte da camada fotográfica. Sei que foi um trabalho exaustivo e de uma grande delicadeza para não deitar tudo a perder. Daí para diante não houve mais problemas porque foram feitas cópias "master" de que passaram a substituir o negativo original na feitura de cópias comerciais, conservando o negativo como objecto de Museu, com toda a justiça, diga-se. Ainda recentemente se fez outro lançamento da Canção, e portanto novas cópias se fizeram, mas não do negativo original. Este é o relato do que na realidade se passou, sem mistérios, sem intervenções sobrenaturais. Houve coincidência de acontecimentos, o que pode parecer estranho. Mas se quiserem insistir noutra explicação, então eu pergunto: porque foi possível à tecnologia bastante rudimentar ao tempo, vencer esta batalha? Afinal na vida tudo tem explicação. Terá?

quarta-feira, janeiro 04, 2006

O "Macaco" do Marcos...

Os aviões da DTA. Os carros velhos. O "Macaco" do Marcos...e eu.
Ao longo dos vinte e nove anos, oito meses e quatro dias que vivi em Angola, voei centenas de horas nos Douglas DC3, ( Dakota) magníficos aviões de 40 lugares capazes de aterrar em quase todos os campos espalhados pelas grandes e pequenas povoações do interior. Por fim já não voava naquele em que, tempos antes viajara, voava sobre a matrícula (DTA- P?) que se mantinha, mas do aparelho inicial já pouco existia A DTA, ( Direcção dos Transportes de Angola) tinha excelentes oficinas e melhores mecânicos que, chapa aqui, trem ali, motor acolá, faziam renascer um novo aparelho do qual, como já disse, só a matrícula sobrevivera. Comecei a voar nos Dakota em Janeiro de 1950, e voei sobre a mesma matrícula até Agosto de 1979.
Assim são os carros velhos, de que os meus foram paradigma: um carborador agora, uma biela mais à frente, um diferencial depois, um motor finalmente, e pronto, só sobejava a matrícula. Mas já nem a chapa era a mesma.
Em Lisboa onde vivi até aos trinta e três anos, os operários usavam como indumentãria de trabalho um fato-macaco de ganga. Assim o meu Amigo Marcos companheiro de ttrabalho na Tobis onde trabalhámos em muitos anos e muitos filmes , não fugia à regra e usava um desses fatos emblemáticos. Aos fins de semana ia para a lavar pela Felismina, sua Mulher que além disso tambám o remendava. Um rasgão aqui, um "coçado" mais ali eram habilmente substituídos por um pedaço da mesma ganga. Mas o tecido original ia perdendo a cor, os remendos eram de pano novo, e como estes se iam estendendo ao longo do tempo, já nemhum acertava na cor com outro e muito menos com o original. No fim, tal como sucedia com os aviõe e os carros, só sobeviveria a matrícula - . se matrícula tivesse - como não tinha, restavam as costuras como representantes heróicas do "macaco" primitivo. Já falei dos aviões, dos carros, do "macaco" do Marcos. E eu ?
Que tenho eu a ver com isto? Pois alguma coisa terei sim senhor. Se não vejamos: primeiro tiram-me o apêndice. Depois reparam-me uma hérnia. A seguir puzeram-me uns óculos. Subestituiram-me os dentes. E finalmente (será mesmo finalmente) remendaram-me as coronárias e puseram-me um "pacemaker." Como não tenho matrícula:
Com tanta substituição /terei'inda a identidade /que o nascimeto me deu?
Pergunto-me se nesta idade /ainda serei mesmo eu?

terça-feira, janeiro 03, 2006

A Menina dos Alfinetes

Ao longo da minha "curta" e variada vida tenho assistido a muitas comédias e a muitos mais dramas. Muitas daquelas me divertiram, muitos mais destes me comoveram. Mas nada me enterneceu tanto pela sua ingenuidade e Amor como o episódio que passo a contar. Durante um Congresso Internacional reunido em Lisboa, teve lugar um almoço numa das salas do restaurante Trindade. Fui fazer a cobertura fotográfica do evento, por isso pouco tempo estive sentado. As constantes intervenções dos congressistas nacionais e estrangeiros, tanto mais prolixas quanto mais o almoço avançava, não me deixavam em sossego. Aliás eu estava ali para isso mesmo. Numa das ocasiões em que estava de pé com as máquinas penduradas ao pescoço, aproximou-se de mim uma garota dos seus dez ou onze anos olhando para uns alfinetes de ama que eu tinha espetados na correia da máquina,- não vem ao caso o porquê da localização dos ditos – perguntou-me: "porque é que tem aí esses alfinetes?” Apanhado desprevenido respondi a primeira tontice que me veio à cabeça. "São para dar sorte" – "e dão?" perguntou. "Pois dão, queres?" "Quero." Despreguei os alfinetes,dei-lhos e ela foi-se embora. Passado algum tempo voltou."Tome lá os alfinetes, já não os quero." Espantado,perguntei:"então porquê"? "É que assim o senhor fica sem sorte" Fiquei emudecido, sem reacção por uns momentos. Recuperado, propus-lhe dividirmos os alfinetes que eram um conjunto de sete ou oito. Aceitou,assim fiz e ela foi-se embora. Fui chamado à mesa para mais umas fotos e quando voltei a procurá-la já tinha desaparecido. Ainda hoje não me perdouo por isso. Porque não a levei logo junto da mesa, e contei a estória? Estou certo de que ela venderia ali toda a lotaria. Mas afinal os alfinetes sempre me deram sorte, permitindo-me conhecer, ainda que por breves minutos, uma criança de coração puro e generoso. Esta é uma linda recordação que guardo dos alfinetes, e até hoje, ainda conservo uns quantos presos na correia da máquina.
E ela? Passados vinte anos, o que será feito da garota que por breves minutos me maravilhou? Uma Mulher de trinta anos com uma filha de dez ou onze a vender cautelas. Mundo cão este.