Roxa xenaider

sexta-feira, março 31, 2006

Retalhos da vida de um militar

Vénia a FernandoNamora

Cidadela de Cascais 1937. Grupo de Artilharia Contra Aeronaves. Unidade dita de Elite, ou não albergasse no seu seio o General Carmona. Era uma Unidade Militar de pequeno efectivo – cerca de trezentos homens – em quatro Baterias. Eu era amanuense, e ouvia muitas conversas que os oficiais mantinham com os seus camaradas da Secretaria. A meio do ano comecei a ouvir falar num Oficial que vinha para a Unidade e de quem os outros traçavam os maiores encómios, do ponto de vista deles, militar portanto: competente, disciplinador, corajoso, não quero mentir (já lá vão tantos anos) mas teria andado na Guerra de Espanha. Tudo isto não era de molde a dar tranquilidade ao restrito número de camaradas meus, de confiança, a quem transmiti os receios que em certa medida também eram meus, apesar de, não andando "à linha", estar mais resguardado. Pelo menos eu assim julgava. Até que chegou o dito Oficial, e ficámos todos estarrecidos. Fardava como um Oficial Prussiano (conhecíamos pelos Jornais de Actualidades Cinematográficos ) o físico dava ajuda: naturalmente elegante, parecia ter nascido dentro do
uniforme. Barrete com a testeira levantada, quase na vertical e onde brilhavam as Armas de Artilharia. Pala muito curta, descida sobre os olhos, num dos quais faiscava um monóculo. Mas o que mais me saltou à vista – premonição, talvez – foram as botas altas elegantíssimas. Se parecia ter nascido dentro da farda, não sei que dizer daquele par de botas altas, negras, muito lustrosas que me ficaram até hoje na memória. Era o Tenente Carlos Kol d’Alvarenga. De uma família de Militares que se prolonga até hoje, e de que conheci em Luanda um Oficial (da FAP ou dos Paraquedistas). Muito cumpridor do Regulamento, o que só abonava em seu favor como militar, mas que não era o que os soldados mais desejavam Quando estava "de dia", era o pânico: "Ó Malta. Hoje está o Alvarenga! de Oficial de Dia!" Mas não acontecia nada de grave, a “malta” não facilitava. Fazia várias rondas às sentinelas. Já se sabia que não se podia fechar os olhos. Tão longo exórdio porquê ? jJustamente para chegar ao episódio que pretendo relatar, e que não teria o mínimo interesse sem antes se procurar traçar o retracto do protagonista.
A rotina do quartel começava pelo bárbaro costume da Alvorada às seis horas da madrugada. Seguiam-se a formatura, a chamada e a trôpega marcha até à casa de banho no"longínquo" lado-de–lá-da –Parada. Conforme já disse, eu era cabo amanuense, na Secretaria, cuja abertura
era às nove horas. Para quê então obrigar-me a uma madrugada para depois gastar três inúteis horas para "pegar ao trabalho."? Assim, quando o sargento de dia era simpático, e alguns eram-no, não só de sua nature (menos) mas porque eu lhes dactilografava documentos dos seus cursos (mais); se era simpático, dizia eu, deixava-me ficar deitado. Por volta das sete e meia oito horas, levantáva-me, fazia mais tranquila e detalhadamente as minhas abluções. Depois ia pedir a chave ao Oficial de dia e começava o meu dia de trabalho. Sabia de véspera qual o sargento de serviço e, quando era caso disso, fechava a Secretaria mas deixava só encostada a porta das traseiras por onde a formatura passaria na madrugada seguinte. À Alvorada, vestia as calças, punha o capote pelos ombros e escondia debaixo dele o cabeçalho (instrumento de tortura em que os soldados daquele tempo deitavamos a cabeça). Quando passava diante da porta encostada, esgueirava-me lá para dentro. Uma vez conseguido o mais difícil, juntava a secretária do Sargento Ajudante com a minha, deitava-me, cobria-me com o capote e dormia o sono da manhã mau grado a dureza da "almofada". Mas a fatalidade atingiu-me. Subitamente sou despertado paelo ruído da chave na porta da frente. Só podia ser o Oficial de Dia, o Tenente
Alvarenga. Não sei se continuei a dormir se foi uma síncope que me deu. De qualquer forma, consciente ou inconscientemente tomei a decisão certa: deixei-me ficar, e só não rezei porque não sabia. As duas salas, eram contíguas e não havia porta dividi-las. Os passos marciais chegaram a meio da primeira sala. Só pude ver umas elegantes botas altas, e "elas" viram-me a mim e estacaram, os passos marciais passaram a "pé-ante-pé". Continuei com a cabeça debaixo do capote e esperei angustiado pelo que haveria de vir. Passaram por mim sempre em bicos de pés foram ao armário dos impressos, serviram-se e refizeram o caminho anterior passando novamente por mim que estava pouco menos que gelado. Mal a porta da frente se fechou dei um salto e fugi porta fora . Quando fui capaz de voltar a pensar, perguntei a mim próprio: Como é que eu vou pedir a chave de uma casa onde estava a dormir abusivamente ? Mas como a situação não tinha remédio. Ajustei bem o uniforme de trabalho, pus o barrete "como eles gostavam", engraxei as botas e endireitei as grevas "como eles gostavam" e finalmente, diante do enorme espelho da Caserna, ensaiei uma continência bem marcada, uma bater de calcanhares bem vigoroso e, o mais difícil, falar com voz forte e decidida. Tudo ao gosto do tenente Alvarenga. E lá fui: - porta do Gabinete.- Paragem para tomar fõlego. Continência e grande calcanheirada simultâneas; saíram bem. Voz firme quanto pude:
"MEU TENENTE DÁ LICENÇA?" Entra. "Venho buscar a chave da Secretaria, meu Tenente." Deu-me a chave que recebi numa mão pouco firme. Saída com o mesmo cerimonial da entrada . Tudo isto me parecia surrial. Assim que pude conseguir a tranquilidade que me permitisse pensar; procurei perceber aquilo que, se me contassem, teria alguma dificuldade em acreditar. O que é que se teria passado na cabeça daquele Militar rigoroso e disciplinador ? Vou procurar imaginar o que o Tenente pensou:"Tenho a chave na minha mão, a Secretaria está fechada e
esta gajo vem para aqui dormir. Se o apanho não passa sem uma grande "porrada". Mas se não me vir não sabe que eu o vi. Vamos lá passar devagarinho". Enquanto procurei sondar o que se teria passado naquela cabeça de militar cheguei à seguinte conclusão: não foi na cabeça do Tenente de Artilharia Carlos Kol de Alvarenga com o seu uniforme à Prusasiana que tudo se terá passado. Foi no CORAÇÃO.


Adenda:

Este é o retrato do coronel Alvarenga, que me atrevi a retirar do blog de um dos seus netos.

terça-feira, março 28, 2006

Auto- Sugestões

Auto-sugestões...
... são duas histórias semelhantes, separadas, no tempo por mais de vinte anos, e no espaço por mais de oito mil quilómetros A primeira é muito pessoal e bem poderia ficar desconhecida. No entanto não posso deixar de a divulgar pela paradoxal parecença/diferença com a segunda. No fim da minha adolescência, lá pelo longínquo final da década de trinta do Século passado, estava ainda em casa de meus Pais e, na ocasião, desempregado. Por isso procurava aliviar minha Mãe do peso de cuidar de três filhos pequenos. Um dia fui às compras e trouxe fígado para fazer iscas. Ao tempo quase todos os produtos à venda nas lojas de Bairro eram embrulhados em "papel pardo", um papel ordinário, grosso e pesado com bastante "peso" no peso/custo nos nossos levíssimo bolsos. Também no talho usavam aquele papel e eu cheguei a casa com as iscas numa deplorável e nojenta amalgama de fígado, papel e sangue. Lavei tudo com cuidado para tirar o papel do fígado, e da minha memória. Fiz a vinha de alhos como deve ser. Tudo impecável. Fui até junto de minha Mãe e perguntei: "oh! Mamã, acha que uma lavagem com duas águas é suficiente para tirar o gosto a sabão?" "De que é que tu estás a fala?" "do fígado. Para conseguir tirar o papel de embrulho tive de o lavar com sabão". e a minha pobre Mãe em pânico: "Ai homem o que tu foste fazer ! o Pai vai dar por isso e será um inferno" "Mas eu lavei muito bem em duas águas... já lhe pus vinagre, alhos e louro.." A minha Mãe ficou para morrer coitada. Combinou-se não falar disso a ninguém e... fosse o que Deus quisesse. Ao jantar, sentados à mesa ( o Pai na cabeceira, a Mãe à direita, eu à esquerda e a seguir as crianças ). A minha Mãe, à minha frente com uns olhos de pânico que já me faziam pena. Mas resolvi fazer uma pequena provocação: " então Papá, que tal estão as iscas. ? Olhe que fui eu que as temperei". – e ele: "Estão boas, estão muito boas". Mas ao mesmo tempo estranhou os olhares apavorados da Mulher e perguntou: "mas afinal o que é que há?" Aí, a minha pobre Mãe não aguentou; "imagina que este parvo foi lavar as iscas com sabão" " Mamã! Porque é que foi falar nisso"? atalhei eu, " o Papá não disse já que as iscas estão muito boas?" Então, o impossível aconteceu: "Bem! Disse o meu Pai, elas estão boas... mas eu sempre lhes achei um gosto esquisito" As crianças e as Avós já velhinhas juntaram-se ao coro e as iscas já sabiam mesmo a sabão a toda a família. Então indignei-me. "Mas Vocês tomam-me por um débil mental capaz de lavar as iscas, ou qualquer outra comida, com sabão ? Não vêem que foi uma brincadeira minha com a Mamã?" Não viram! Preferiram a versão "débil mental", pois não houve forma de os convencer e no decorrer do Tempo, sempre que o assunto vinha à baila: "as iscas sabiam mesmo a sabão". Esta foi uma auto-sugestão provocada por uma brincadeira que se voltou contra o brincalhão. Outra caiu-me directamente no "colo". Depois contarei..

quinta-feira, março 23, 2006

Um Figurão


UM FIGURÃO

Era grande, fortíssimo, semblante carregado , um cabelo hirsuto, de um loiro escuro e baço cobrindo uma cabeça demasiado grande para conter tão pouco. Abrutalhado notrato, era Dr. "jornalista" e Censor. Num ano que não posso precisar na década de cinquenta do Século passado, o cantor Alberto Ribeiro levou a Luanda um grupo de bailarinaspara “refrescar” o seu Concerto no Cinema Restauração. Quando do ensaio para a Censura, o Alberto Ribeiro levou-me com ele para assistir. Isto não era muito correcto mas o ensor conhecia-me das reportagens em que por vezes nos encontrávamos. Pude portanto assistir ladeando, eu e o Alberto aquele Menir. Quando uma bailarina espanhola muito graciosa aliás, dava umas voltas mais rápidas a saia levantava-se ligeiramente acima do joelhos deixando ver um pouco da coxa. Não é que o Dr.,Censor,"jornalista" fica escandalizado e diz ao Alberto Ribeiro que aquilo não podia passar. Tratava-se de um espectáculo para maiores de seis anos, dizia ele. O cantor argumentou quanto pôde mas não teve outro remédio se não subir ao Palco e pedir à bailarina para rodar mais de vagar. Enquanto isso, eu que me mantivera como devia, afastado da conversa, disse: "Ó dr.então aquilo tem alguma coisa de mal? As criancinhas de 6 anos vão ligar alguma coisa às pernas da bailarina? resposta do proboscídio com olhar e voz cúpida: "Para nós é o melhor, Para nós é o melhor"... Mas deste personagem há mais a contar. Anos depois, durante a visita do Presidente Craveiro Lopes a Angola, o Figurão acompanhou todo o percurso de trinta e seis dias como correspondente da Lusitânia, a Agência de Informação Estatal. Era uma calamidade para os jornalistas da imprensa diária da Metrópole. Escrevia longuíssimos despachos porque a sua Agência, como era Oficial, não tinha de os pagar. Oriundo de famílias campesinas, estava habituado a levantar-se de madruga à hora a que o verdadeiro jornalista se deita. Nas manhãs seguintes,a cada deslocação, “mal luzia o buraco” postava-se à porta dos Correios para desespero do camaradas que não podiam mandar as suas matérias a tempo de serem publicadas nos jornais diários. Mas o castigo chegou finalmente. Viajávamos do Leste a caminho do Lobito a bordo do magnífico combóio do Caminho de Ferro de Benguela ( CFB) Tínhamos embarcado no Luso ou Silva Porto, não estou certo. Desta última Cidade são setecentos quilómetros até ao litoral, e a viajem dura dois dias. A certa altura do percurso, o Óscar Machado que era o técnico do Rádio Clube de Angola,rapaz com muita graça, tinha mesmo criado um personagem- O Isqueiro em que se transmudava em negro, intervindo principalmente em espectáculos para crianças. Com a sua imitação de um negro e da sua maneira de falar, criou o personagem "Isqueiro", que muito as divertia ... e não só az elas,porque a coberto da ingenuidade do personagem,dizia por vezes umas "directas" audaciosas e arriscadas. Já que me desviei do caminho que trazia, vou seguir mais um pouco por este que quase sem querer tomei. Em princípios da década de sessenta foi resolvido pela Governação da Metrópole criar a Assembleia Provincial, miniatura da Assembleia Nacional, com deputados “eleitos”. Em tudo igual à Casa Mãe. Funcionava numa Sala do Museu de História Natural onde havia exemplares muito perfeitos da riquíssima Fauno de Angola.O Óscar Machado logo disse imitando a prosódia local: “ "angora foi naugurada a “sala dos Pampagaio." E já "angora" vou retomar a estrada principal de que há tanto me afastei.A meio da viajem o Óscar sentado no nosso compartimento onde tinha o material de Radio, põe auscultadores,pega num microfone, atira os cabos para debaixo do banco e diz-nos: "quando o Molotofe vier aí pelo corredor, avisem-me" (Molotofe era o "petit nom" que tínhamos dado à criatura por via dos seu enorme e mal cuidado bigode). Assim foi, pusemo-nos à espreita e quando o vimos aproximar, começou o Óscar:"Alô Luanda,alô Luanda, aqui comboio Presidencial. Alô, escuto". O Molotofe, pára à porta e começa a perguntar ao Oscar se pode também falar com Luanda. O Radialista manda-o calar; "não vê que estou a falar com Luanda" mas acaba por tapar o microfone e diz-lhe para ir buscar os papéis. Entrega-lhe o microfone depois de ter anunciado para "Luanda" quem iria falar a seguir. O outro começou a falar, e o Óscar de quando em vez, ia recomendando: " fale mais perto do microfone... fale mais alto". E o infeliz lá foi mandando o "despacho" para ... debaixo do banco do comboio do CFB. Chegado a Benguela, andou todo contente a rir-se dos outros a quem julgava ter passado mais uma vez a perna. Como ele, pelo menos, não matou o Óscar, nunca se percebeu.

segunda-feira, março 20, 2006

No Centro de Saúde de Sacavém

Pouco tempo após a Independência de Angola, foi trocada a moeda, de Escudos para Kuanzas. Esta operação que se esperaria complicada, demorada e até tumultuosa, decorreu na maior tranquilidade e terminou em poucos dias. Como foi isto possível? Com inteligência, competência e organização. Algum tempo antes, tinham sido afixados grandes cartazes nas lojas que, nos vários bairros, haviam sido abandonadas pelos proprietários. Esses cartazes, informavam que em breve abririam para retomar a actividade.
Na véspera do dia marcado para a troca, foram os funcionários do Banco de Angola e, de vários serviços públicos, concentrados neste Banco onde receberam instruções sobre a tarefa que os esperava e de onde sairiam só no dia seguinte a caminho dos seus locais de trabalho. Foram fechados os Portos e Aeroportos. Ninguém entrava nem saía do País. Não havia operações bancárias. A Rádio e a Televisão, anunciavam insistentemente que, no dia seguinte, seria efectuada a troca da moeda, dando instruções sobre o procedimento a seguir. Assim, cada um deveria dirigir-se à loja do seu Bairro, antes fechada, e que agora ostentava o cartaz : “Troca de Moeda”. Poderia levar Escudos até ao valor de vinte contos que seriam trocados por igual quantia em Kuanzas. Do que fosse além desse valor, seria passado recibo. Quanto às contas bancárias, seriam automaticamente cambiadas pelo próprio Banco.

Formaram–se filas demasiado longas para serem atendidas no próprio dia. A operação iria ser mais ou menos demorada, consoante a experiência anterior dos “caixas”. Mas, com paciência, as filas lá foram encurtando pouco a pouco, e para surpresa de todos, quando se aproximava o fim do dia, foram distribuídas senhas numeradas, pelas pessoas que restavam. No dia seguinte teriam prioridade. Achei uma medida muito positiva.
Mas agora estou perplexo com a minha tão estranha confusão. Porque me teria eu metido por um caminho tão diferente daquele que, à partida, me propusera trilhar? Porém, algo neste relato me terá trazido um lampejo de memória. Agora me lembro! Foi o episódio das senhas para o dia seguinte. Mea Culpa! Vou pois remeter-me ao assunto que o título indicia. Procurarei ser breve. Referir-me-ei ao Posto de Saúde de Sacavém Todos os utentes deste Posto estamos em igualdade de circunstâncias, todos recebemos os mesmos cuidados médicos, todos sofremos com a burocracia, todos somos ignorados pelas entidades dirigentes, que ouvem falar de nós, mas nunca nos viram e que, permito-me pensar, nem nisso estarão interessadas. Desse distanciamento resulta alguma incoerência. Por um lado, o médico a tentar curar-nos, por outro, a burocracia a impedir que isso aconteça.
Eis um caso paradigmático: O médico de família prescreve Fisioterapia e passa uma credencial para a respectiva Clínica. No caso a da Bobadela, a cinco minutos de carro. Parece que essa credencial seria válida. Não. Tem de ir a Lisboa para validar, (menosprezo pelo médico? De certo que não.) Mas a omnipresente burocracia, personificada nos senhores de que acima falei, e que adoram ver num documento que não leram, a sua assinatura, chancela ou “jamegão” (já meus conhecidos de Angola) esses sim; esses são os responsáveis pelo emperrar da “máquina” e pela espera do retorno da credencial dentro de... oito a dez dias, protelando o início dos tratamentos, e prolongando o sofrimento de quem deles precisa.

Porém este atraso, ainda é o menor dos males. Basta suportar as dores por mais esses penosos dias. Mas no fim da primeira série de quinze tratamentos, já a coisa se apresenta de forma diferente. Vejamos: o Fisiatra prescreve mais uma série de quinze sessões. Leva-se o documento ao médico de família. O tempo de espera pela consulta depende das vezes que se tiver de ir para a fila e apanhar ou não ficha de inscrição, ou uma das poucas senhas de que o médico dispõe. Sejamos optimistas, aceitemos 3 dias. O médico passa nova credencial, espera-se a sua volta de Lisboa, (os tais 8 a 10 dias). Na Clínica: 2 a 3 dias. Total da interrupção entre a primeira e segunda séries: 13 a 16 dias. Tempo mais do que suficiente para que se perca o efeito dos exercícios anteriores, sabido que, bastam quarenta e oito horas de intervalo entre um exercício e o seguinte para que todo o benefício se perca.

E agora, espero que me seja perdoado citar o meu caso pessoal, faço-o por ser paradigmático, pois como disse atrás: “ todos nós, para o bem e para o mal, recebemos os mesmos cuidados”. Três sessões de quinze tratamentos cada, espaçadas de quinze dias entre si, pelos tempos de espera, totalizam três meses, isto é, o dobro do tempo necessário, e sem melhoras sensíveis Admito que se os não tivesse feito, poderia ter piorado. Fraco consolo. Face a isto, o médico de família resolveu dar outro rumo ao caso, enviando o paciente (na verdadeira acepção da palavra) para uma especialidade.

Meados de Agosto; férias da Clínica de Neuro–Cirurgia (demora extra, ninguém tem culpa). As consultas e os exames estendem-se até princípio de Outubro. Finalmente tenho nas mãos os relatórios que me apresso a levar ao médico de família. Confesso que não fui tão lesto como quem chega às cinco da manhã, a tempo de arranjar lugar num dos dois generosos bancos que acolhem oito das muitas dezenas de pacientes. A minha desculpa, se desculpa tenho, é que não posso estar de pé muito tempo. Assim, cheguei pouco depois das oito e meia. Coube-me a senha nº 13 (bom ou mau augúrio?). O quadro electrónico mostrava o nº 50... da série anterior –mau augúrio– tinha 63 pessoas à minha frente. Reparei que o atendimento se estava a processar à razão de oito pessoas em cada quarto de hora -bom augúrio. A continuar assim, teria de esperar “só” duas horas. Resolvi esperar. O médico entrou quase logo a seguir –bom augúrio– mas, pouco depois uma voz distorcida pelo mau microfone anuncia: “Já não há consultas para o Dr...“ –péssimo augúrio- era o meu médico. o que tinha entrado pouco antes. Sabendo por experiência, que o Dr. vinha cá fora por volta das dez e meia e trazia umas quantas senhas que davam acesso à consulta, fiquei à espera. Assim foi, o Dr.... veio e, muito logicamente foi entregando as senhas a quem tinha os números mais baixos. Não tive sorte, o nº 13 não funcionara para o meu lado. Trazia comigo a carga de exames que havia sido pedida por aquele médico em Agosto. Estávamos nos primeiros dias de Outubro. Trazia também uma carga de dores que me obrigavam a curvar a coluna. Penosamente, arrastei-me até ao “meu médico” com a intenção de, pelo menos, lhe entregar os “exames”. E, confesso que a minha dignidade sofreu um golpe doloroso: curvado como um velho - que sou- e com o “auxílio das dores, mais parecendo um mendigo rogando uma esmola, balbuciei umas palavras, que ele cortou cerce: “Já não tenho mais senhas, volte noutro dia”. Não reconheci naquela secura o médico atencioso, preocupado e simpático de ocasiões anteriores. Não podendo lutar contra a rigidez daquelas regras, dirigi-me à recepção, para me inscrever, no tal “outro dia”. “Que não senhor, as inscrições eram só para o próprio dia. ”Perguntei: “então, e se vier e novamente não obtiver consulta?” “Então venha noutro dia”. E assim seria sabe–se lá por quanto mais tempo. E quando perguntadas pela razão dessa regra, as pobres funcionárias não tem poder para mais do que encolher os ombros e dizer “então, é assim.”

Mas os médicos deveriam ter força e coragem para defender os seus doentes dos administradores, directores etc, que eventualmente terão sido médicos, mas ascenderam a posições mais cómodas e burocráticas. A indiferença perante esta coisa tão simples como a distribuição de senhas que, em parte evitaria a longa espera e o sofrimento de tanta gente, velha na sua maioria. O médico que ouve com toda atenção as queixas e os lamentos dos seus doentes a quem procura minorar os males não pode, não deve esquecer-se de que a pessoa de cujos males cuidou, continua a existir para lá da porta do seu gabinete; que esteve e estará outra vez –se outra vez houver- ao frio e à chuva durante horas, para conseguir (ou não) uma senha de consulta, tornando pouco menos que inútil a medicação prescrita. Então, porque não distribuir senhas para evitar estes males? Exames feitos há mais de um mês ainda não puderam ser presentes ao médico. Entretanto fiquei sabendo que se podem marcar consultas. pelo telefone. Haja enfim algo de positivo. Satisfeito com o facto e pela facilidade que ele representa, telefonei hoje, dia seis de Outubro, e perguntei à funcionária: “posso marcar consulta para o Dr...?” e a funcionária, aliás muito simpaticamente, responde-me, sim senhor, fica marcada para o dia 8 ...de Novembro. Assim, após dois meses e meio, vou ter, terei(?) a inefável dita de mostrar ao médico os quiçá, desactualizados e, por isso, imprestáveis relatórios, R X e TACs, análises. E, já agora, porque não mostrar também, todo o meu desespero como doente e toda a minha revolta como homem? Continuarei a protestar e, espero que outros o façam também.

Nota: Tenho este escrito guardado desde Novembro de 2005 hesitando sobre o destino que lhe
deveria dar - para além do o ter dado ao meu Médico - com quem conversei, e mantenho as melhores relações. Mas hoje, 20 de Março de 2006 vi na Televisão uma reportagem numa Instituição para Crianças portadoras de uma doença congénita, sem cura e creio que degenerativa que não dará mais do que trinta anos de vida. Uma Senhora dirigente da Instituição, apontou entre outras causas das dificuldades sentidas: " a indiferença e a vontade de poupar por parte do Estado" Isso me decidiu. Afinal, sempre há mais alguém a protestar.

sexta-feira, março 17, 2006

... à volta das filmagens...

O filme "Vendaval Maravilhoso" de Leitão de Barros, 1948, foi rico em episódios curiosos, cómicos uns, outros nem tanto assim. Aquele de que hoje quero dar conta, pode parecer digno de riso, mas não foi "tanto assim" A cena passava-se na Sala do Senado Brasileiro, por isso se chamou uma "Figuração Especial" constituída por Actores de Lisboa e também dos Teatros itenerantes. Pessoas capazes de envergar casacas e fraques sem que os Senadores se tornassem "gatos.pingados". Nisso o Realizador era exímio a distinguir a subtil fronteira entre o sério e o ridículo. Um dos Artistas de um Teatro Itenerante, tornava-se notado pelo seu porte elegante e altivo. Chamando a atenção do Realizador que lhe entregou uma pequena "fala" No primeiro ensaio o senhor Valério de Rajanto, de seu nome, declamou a frase com uma voz "empostada" que já nem o grande Actor Alves da Cunha usava. E o Leitão de Barros diz: "Ó Senhor Valério de Rajanto, por favor um pouco menos de ênfase". E o De Rajanto: "Ó José, é como tu quiseres". Repetiu-se o ensaio, a frase saiu igualzinha à anterior, e o L.B. "Não é bem assim. Eu preferia mais..." e novamente o Sr. De Rajanto, "Ó José. Há mil maneiras de dizer a mesma frase, e eu sei-as todas. Queres mais...assim? pois bem" E repetiram-se os ensaiospara alem do que seria razoável, e pelo que nós conhecíamos dele, o L de B., já teria o fígado verde. Mas insistia, fazendo sempre ressaltar: "Ó SENHOR Valério de Rajanto..."Para receber em troca um "Ó José". Toda a equipe se sentia já incomodada e penalizada com a situação do pobre actor. Nunca o Leitão de Barros suportaria um tão grande número de ensaios sem dar dois berros.Pensámos que ele teria qualquer coisa em mente, e não nos enganámos. No fim de tantos ensaios, ele cala-se, faz aquela pausa dramática que os actores fazem para obter um melhor efeito, e diz numa voz lamentosa: "Bem... vamos filmar mesmo assim." Não sei o que teria sentido o desventurado Actor.Mas sei o que todos nós sentimos. E não foi agradável.

quarta-feira, março 15, 2006

O soldado mestiço

Grupo de Artilharia Contra Aeronaves, ( G. A..C A ). Cidadela de Cascais, Janeiro/1938. Na Secretaria da Unidade havia dois Tenentes, o Torrado Barranquenho de origem, com idade de general, mas a cujas Estrelas nunca teria acesso, dada a sua condição de "Tarimbeiro." O Chefe da Secretaria, era o Tenente Anibal Cipião Formosinho e Silva, (Silva Reis). Tinha sempre um ar carrancudo, sem um sorriso a iluminar-lhe o rosto trigueiro e preocupado. Talvez temesse outra Guerra Púnica entre os seus nome e sobrenome. Neste acaso uma Guerra Intestina em que ele próprio seria um Novo Cartago . ( na verdade há Padrinhos que... Realmente!!!) A sua alcunha já vinha de anteriores incorporações: “Quinas-Quinas”, termo antecipando possíveis castigos, e que o Tenente Silva Reis usava, acompanhado de ameaçador abanar da cabeça. Na verdade, nunca o vi participar de ninguém e pessoalmente sempre me deu o tratamento formal de Oficial para Cabo, sem a prepotência e até em a sobranceria notável em alguns Sargentos.. A que vem este longo exórdio? Pois apenas para localizar a acção e o ambiente: na altura recebiam-se os novos recrutas . Os mancebos apurados chegavam acompanhados das respectivas Guias de Marcha. Recebidos, era-lhes atribuído um número, encaminhados para a Bateria , e estava feita a incorporação. A partir daqui., eram Soldados Recrutas. Naquele Ano, entre os voluntários apresentou-se na Unidade um rapaz mestiço que foi objecto da mesma rotina de sempre. E tornou-se Soldado Recruta. Algum tempo depois, não posso precisar quanto, mas ainda no decorrer da Recruta , chegou à Secretaria um Ofício do Governo Militar a mandar licenciar o recruta em causa . Como é óbvio, não tive acesso ao Documento que era confidencial. Mas foi como se o tivesse lido, porque foi tal a surpresa e até uma contida indignação com que alguns Oficiais vinham à Secretaria comentar o caso com os seus camaradas, que assim, um Documento que era suposto ser confidencial, tornou-se de domínio público. O moço era impedido de seguir a carreira militar, por ser de Cor. Inesperadamente, entra pela Secretaria dentro o Tenente Silva, há pouco tempo na Unidade. Trazia com ele dois recrutas, o descriminado e um outro. Aponta os dois, e em tom exaltado pergunta aos seus Camarads: "Vejam lá qual destes dois é que é preto?" Realmente um, mestiço muito claro, exibia feições perfeitamente Caucasianas, enquanto o outro, sem dúvida de raça branca, a julgar pela cor, tinha as feições negroides de um legítimo africano. Claro que não houve nada a fazer. Tropa é Tropa, ordens não se discutem , e o rapaz foi-se embora sabe-se lá com que trauma e com quanta revolta. Um ano antes, 1937, o Oficial comandante da recruta era o Tenente Andrade, alto, forte, porte atlético nos seus quarenta e tantos anos. Na altura dos factos narrados, continuava no Grupo Contra Aeronaves, exibindo , certamente com orgulho, a cor que inculcava a sua origem Caboverdeana . Lá estava e lá continuou. Tropa é Tropa. !!! não pretendo fazer uim elogío.

sexta-feira, março 10, 2006

O Barriguinhas

Escrevo esta história quase como uma penitência. Não me lembro do nome, ou talvez nunca o tivesse sabido. Já lá vão mais de setenta anos. Numa pequena Leitaria da Rua dos Remédios a Alfama, o meu Bairro, juntávamo-nos - um grupo de adolescentes conversando e discutindo tudo o que era permido discutir naquele tempo, isto é: futebol. Todos nos conhecíamos bem, todos tínhamos nascido no Bairro. As discussões,por vezes acesas, sempre acabavam em bem, se algum ficava mais azedo, no dia seguinte já tudo tinha passado e voltávamos de novo ao futebol e a nova discussão. Entre nós havia um moço franzino, julgo que tipógrafo, muito magrinho mas que tinha uma barriginha ( não tinha infrastrutura para uma maior ) muito pronunciada que parecia ir, não com ele mas à frente dele. No nosso Bairro todo aquele que se distiguisse por qualquer caractarística particular tinha um alcunha. Este era o "Barriguinhaa." que ele alás aceitava muito bem. Uma noite igual às outras travava-se uma discussão... igual às outras: o incontornável futebol. Gostava de futebol como era indispensável para ser creditado naqueles "cenáculos". Mas não era um fanático, e preferia levar tudo na bincadeira e acirrar os ânimos, troçando do facciosismo dos outros. Pois numa noite, como disse, o "Barriguinhas se volta para mim e diz: "mas tu não vês que"... eu interropi-o: "tu não, o Senhor." Ele olha para mim, cala-se e vira-me as costas. Continuei a conversa sempre no mesmo tom de brincadeira com uns e outros, inclusive com o Barriguinhas que continuou a ignorar-me soberanamente. Os dias passavam e a atitude do Barriguinhas matinha-se inalterável. Parecia olhar através de mim para o "lado de lá". Bem me esforçava eu para reverter a situação: "vejam vocês este parvo que não entende uma brincadeira". E as coisas continuaram do mesmo jeito até que eu me rendi e deixei de lhe falar também. Os anos passram e de vez em quando lembráva-me da estupidez do Barriguinhas, até que há pouco tempo - mais de setenta anos decorridos -falando com minha Filha, ela me fez ver o caso de um outro ângulo: o Barriguinas talvez tenha sido pouco inteligente ao interpretar mal a minha brincadeira, tomou o caso a sério, e julgando-se ofendido, ferido na sua dignidade, demonstrou uma grande firmeza de caracter. E eu? Como é que eu saio disto? De certo a minha inteligência também não terá dado grande conta de si. Desculpa lá, onde quer que estejas, Barriguinhas.

O nosso Capitão Cardoso

Quando cumpri o Serviço Militar em Cascais entre 1937/38 do Século XX, obviamente, os Sargentos eram geralmente detestados,e os Oficiais,também na generalidade, não moravam em nossos corações de soldados. Claro, que nem tudo nem todos na vida são maus, havia excepções nums e noutros. Oportunamente falarei de alguns. Por agora seleccionei apenas um: o Capitão Cardoso um Homem para uns cinquenta e poucos anos; baixo, entroncado com uma voz rouca, feiote de cara ao contrário da Mulher que quando o Capitão estava de Oficial de Dia costumava ir ter com ele ao fim da tarde – o casal morava na vila - e passeavam de braço-dado pela Parada. O par oferecia uma imagem um pouco (só um pouco) caricata. A Senhora era bem mais alta do que o marido, e era do tipo –perdoe-se-me a expressão popular, mas estas expressões são mais "expressivas" do que o vernáculo – era,um "Cavalo de Cem Moedas." Aos olhos cúpidos da soldadesca não passava despercebida aquela "metade" do par, e por isso passava e tornava a passar fazendo continência à outra metade, mas em verdade se diga, que nem o viam. Sabiam apenas que ele estava lá. Quantas vezes a inocente Senhora não terá dito ao marido: "querido, os teus soldados estão sempre a fazer-te continência. Devem gostar muito de ti". De facto todos nós gostávamos dele, mas as razões eram bem outras. O Capitão Cardoso era o Director das Aulas Regimentais onde se ensinava pouco e se aprendia menos. De vez em quando ia à Escola ver o progresso dos alunos. Fazia uma pergunta a um, uma pergunta a outro, e quando constatava que o aluno não sabia responder e, constatava muitas vezes, dizia com a sua voz rouca de marcada pronúncia beirã:: "xeu políxia . Voxê não xabe nada, é mesmo um políxia". Tanto bastava para que tivesse abrigo nos noassos corações. Qual é o soldado que não gosta que seja dado como paradigma da ignorância... um Políxia!?