Roxa xenaider

terça-feira, junho 27, 2006

Da Rainha Ginga... ao Presidente Craveiro

Angola, 1954. O Presidente Craveiro Lopes está de visita a Angola. Foram trinta e seis dias muito cansativos , que nos levaram aos sítios mais afastados e recônditos daquele imenso território. Houve vários mas breves encontros com populações nativas cada uma com seus costumes e língua próprios. O entendimento só era possível através de intérpretes das mais variadas origens : funcionários administrativos comerciantes da zona, um ou outro oriundo do mesmo povo ou missionários com longa permanência na Região. O caso a que me reporto, aconteceu no Leste, na Província do Moxico, cuja capital é Luso. Terras de Ganguelas e Luxases. Não sei exactamente em que local terá sido montado um grande palanque onde foram recebidos a Raínha N’hacatole, dos Luxases descendente da Raínha Ginga luzindo os seus trajes tradicionais, e o Rei dos Ganguelas, um homem alto e forte, mas sem nada que o inculcasse como Rei.. Trajava camisa e calça de caqui, tipo militar. Mas naquele palanque não havia nada onde fosse possível sentar. Presidente e comitiva, todos estavam de pé. Mas esta pobreza de meios, parecia radicar em algo passado muitos anos antes. Recuemos pois, trezentos anos. Estamos em meados do Século XVl l. O Governador João Correia de Souza recebeu no Palácio, em solene audiência, a Raínha N’ginga N’bandi ( Ginga ) e a sua comitiva constituída pelas mais importantes mulheres do seu reino. Num grande Salão do Palácio, rodeado de toda a sua Corte, Sua Excelência ocupava um opulento cadeirão senhorial em atitude Majestática que manteve à entrada de N'ginga N'bandi. Olhando em volta, a Raínha, não vendo sombra de cadeira, escabelo ou coxim em que pudesse sentar-se, mandou que uma das suas súbditas se pusesse "de gatas" e sentou-se sobre as suas costas. Em 1621,o exército da Raínha veio a derrotar o do Governador.. Em 1681 morre a Raínha Ginga, católica, batipzada com o nome de Ana de Souza
Saltemos de novo trezentos anos, mas agora em sentido inverso. Estamos de novo com o Presidente Craveiro Lopes,a Raínha KangaN’hetol e o Rei dos Ganguelas. O primeiro discurso coube ao Governador do Moxico, Dr Ramos de Sousa,angolano de origem caboverdiana, usando de um tom de voz forte mas empostado como o dos actores de outros tempos. A Raínha insistiu com o Rei dos Ganguelas para que falasse em primeiro lugar. Logo se verá porquê. O discurso foi tão longo quanto o protocolo e o intérprete o permitiram, rematando com a oferta de um boi ao Presidente Craveiro Lopes. O Chefe de Estado agradeceu a oferta, mas na impossibilidade de a transportar no avião, deixava o boi para que pudesse ser consumido numa grande festa do Povo Ganguela. Nos mesmos moldes falou a N’hacatole, mas terminando com um sorriso "malandro" e com dois dedos em riste, ofereceu dois bois. A gargalhada foi geral... ou quase. Não se riu o Rei dos Ganguelas que se terá sentido diminuído,e o Presidente. Aliás nunca o vi rir em toda a viajem .Mas bem faria em soltar umas boas gargalhadas de vez em quando.
É que fazem tão Bem à Alma !. . .
Não desejaria acabar esta história num tom pessimista, mas.. .não teria Presidente boas razões para não rir ?. . . .

domingo, junho 18, 2006

De como a Custódia poderia ter feito só... 443 anos

Em fins dos anos quarenta do Século passado, creio que em 1949, realizou-se no Porto uma Exposição de Joalharia Portuguesa, instalada no edifício sede do Grémio dos Joalheiros. Para bem se entender o interesse desta história , se algum ela tiver, será preciso mergulhar em mais de cinquenta linhas de texto. Ainda está a tempo de se poupar . Lembro que a leitura é um acto voluntário; depois não se queixe. Mas recuando até ao - "bem se entender" - é necessário localizar o Grémio: ficava numa rua muito (?) larga, arborizada, por isso muito escura, particularmente à noite . Era próxima do Largo dos Póveiros, ao que suponho, lugar pouco recomendável, indiferentemente, de dia e à noite. Ocupava um palacete antigo com uma porta alta e larga tendo em frente um lance de alguns degraus de pedra que davam acesso a um rés-do-chão alto com duas grandes janelas ogivais acompanhando o "pé-direito" das dependências que tinham os tectos altos como era uso da arquitectura à época da sua construção (um desperdício, ou "esperdício" como diria um moderno pato-bravo: "naquele espaço construía-se mais um andar"). Às janelas daquele rés-do-chão, qualquer homem sobre os ombros de outro teria fácil acesso. Pois foi num local tão vulnerável que se instalou a Exposição, tendo, no entanto, todos os cuidados julgados necessários à segurança daquele acervo de preciosidades, algumas de enorme valor artístico e histórico, portanto, sem preço. Mas a que venho eu com toda esta prosa, perguntarão. Aqui vai a explicação. Uma Produtora Cinematográfica de Lisboa fechara contrato com o Grémio para a execução de um documentário que "imortalizasse" a Exposição. Contrataram-me então para realizar, aliás filmar, a Exposição (sou operador e não realizador). Acertados todos os pormenores, partimos para o Porto, eu e o Chefe electricista da Tobis, ao tempo o João de Almeida , meu camarada de trabalho de muitos anos e muitos filmes e grande Amigo que não sei se ainda me acompanhará. Levámos o material de iluminação necessário para o trabalho que nos esperava.. O cenário que se nos deparou à chegada ao Porto não podia ser mais desolador: era pleno Agosto, fazia um calor tórrido; não chovera quase nada no Inverno anterior, e o Porto sofria uma seca como já se não via há anos. Talvez como a de agora, em 2005. A Barragem do Lindoso (?) estava praticamente esgotada.. Por isso vigorava na cidade uma restrição drástica ao consumo de energia, que só havia desde as sete da tarde, até às sete da manhã seguinte. Daí que a Exposição só pudesse abrir ao público, também às sete horas. A Expo encerrava ao público às onze . Foi, pois, a partir daquela hora que pudemos iniciar o trabalho, até ao acabar a luz às sete da manhã . Precisávamos de um homem que ajudasse a manusear os projectores que eram pesados. Nada melhor do que perguntar aos polícias que faziam guarda interna 24 horas por dia, onde poderíamos encontra-lo. Indicaram-nos o Largo dos Pòveiros, mesmo ali ao lado onde, segundo eles, havia sempre desempregados. Lá fomos, o João e eu em busca de mão de obra não especializada. A nossa primeira impressão foi a de que aqueles homens deveriam ser marginais desde o berço que nunca tiveram. Então chamavam-lhes vadios. Como iríamos meter um deles no meio de tanta tentação, seria como pôr o bebé ao lado da marmelada. Estávamos para dar meia volta quando dou de caras com um moço que, anos antes, tinha encontrado muitas vezes na Rua dos Remédios, em Alfama, o meu bairro. O aspecto não o recomendava mais do que aos outros, mas pelo menos, aquele era conhecido. Depois, para que serve o sentimento bairrista ? Contratámo-lo por um bom salário para as poucas noites que nos esperavam. E agora, só agora, depois de mais de cinquenta linhas consigo chegar onde me propus: à Exposição. Esta ocupava duas salas, uma delas , a maior era a que possuía as duas grandes janelas que já referi. As peças estavam encerradas em vitrines, mas era preciso tirá-las para as filmar, como bem se compreenderá. Era indispensável vê-las de vários ângulos , inclusive rodá-las num expositor rotativo do próprio Grémio. Na primeira noite chegou um funcionário munido das chaves, mas também de uma condição que nos impunha que se não tirasse uma peça da vitrine , sem antes guardar a precedente. Concordámos, como era óbvio, e porque não tínhamos outro remédio. Mas uma coisa é concordar e outra poder cumprir.
Muitas vezes tirávamos uma peça que tinha ficar à espera que mudássemos a iluminação do momento, enquanto se filmava outro. A dada altura já havia algumas peças esperando sobre as mesas, a sua altura de entrar em cena , sob o olhar aflito do pobre funcionário receoso da visita de algum dos patrões.
Falei atrás dos polícias, e acho necessário falar da melindrosa missão que lhes fora cometida. A partir do fecho da Exp., às onze da noite, descontraíam-se, e
em mangas de camisa iniciavam umas intermináveis partidas de cartas só
interrompidas pelos abundantes copos de água, do dormitar e do resfolegar com calor. Até que tomaram uma grande medida: foram-se aos alarmes que estavam ligados à Esquadra, e desligaram-nos. Assim, já puderam abrir de
par em par as amplas e altas janelas ogivais daquele rés-do-chão de uma escura e deserta da cidade do Porto que “guardava” uma riqueza de valor patrimonial incalculável . Também o funcionário que depois de ter estado ali até às sete da manhã, ainda tinha de ir ocupar o seu lugar habitual no Grémio, na segunda noite diz-nos : "eu já vi que os senhores são pessoas sérias, por favor fiquem com as chaves e de manhã não se vão embora antes de eu chegar, que eu venho arrumar tudo." E assim ficou simplificado o nosso trabalho, tirávamos as peças e depois não atinávamos com a arrumação e ali ficavam fora das vitrines é certo , mas postas com cuidado sobre as mesas. As
mais pesadas ficavam no chão . Das mesas poderiam cair, e assim sempre ficavam mais seguras. Entre estas estava a mais preciosa jóia, ali exposta, essa sim , de valor histórico e patrimonial , não mensurável: a Custódia de Belém .
E ali estava ela, esplendorosa e indefesa, sobre o soalho, de uma casa de janelas abertas e alarmes desligados, à guarda de dois polícias sonolentos, entregue a três desconhecidos , entre eles um "marginal". Uma perfeita inconsciência . A Custódia, se roubada , por inegociável seria certamente desmontada , fundida, enfim. Irrecuperável . E, penso agora à distância de cinquenta e sete anos, em como estávamos atrasados naquelas décadas de 50 do passado Século. Numa coisa progredimos desde então: na criminalidade especializada. Se já existisse "know- how" actual, a Custódia teria feito apenas 443 anos. E dessa obra-prima do poli –facetado Gil Vicente, ou do Mestre de Balança da Casa da Moeda, ao que parece também ambos ourives. Mas enfim, Da Vinci também teve obras notáveis em vários sectores da Ciência e das Artes., a Custódia seria apenas uma recordação tristemente comemorada,. . . se ainda fosse.!
Quero deixar aqui uma nota positiva: passados alguns anos encontrei num paquete dos que faziam a ligação Metrópole-Colónias o meu patrício de Alfama, ex-marginal. Era praticante de piloto a bordo dos navios da Companhia Nacional de Navegação.
Tinha dado a volta por cima...
Era de Alfama.

sexta-feira, junho 09, 2006

A Censura em Angola (1970)

Íamos iniciar um documentário que o Governo de Angola encomendara à Telecine África para quem, ao tempo, eu trabalhava. Era operador de imagem. Veio de Lisboa (digo "veio" porque estou situado "naquele tempo") para tomar a seu cargo a realização o Manuel Faria de Almeida, com larga experiência naquele género de cinema, e que eu conhecera recentemente em Lisboa e com quem mantive uma boa relação profissional e de Amizade. O filme em questão versava a Instrução em Angola, focando principalmente – se bem me lembro – os Cursos Secundário e Superior. Pedimos uma audiência ao Secretário Provincial da Educação, que era angolano, o Dr. Pinheiro, (estava-se na Primavera Marcelista). Recebeu -nos muito bem e procurou saber quanto tempo iria ter o filme. Quando soube que teria dez minutos, ficou perplexo. "Mas então, eu terei de início,de dar algumas explicações que, por sucintas que sejam, sempre gastarão algum tempo; depois, só aqui no Secretariado, há quase duas dezenas de repartições!?" A pesar dos meus quase vinte e cinco a nos de Angola, que tinha na época, fiquei siderado. Mas o Manel que tinha gravado a conversa toda, manteve uma grande calma e lá foi argumentando até que o DR. Pinheiro resolveu endossar o problema a um dos Directores de Serviços, o Dr. Coimbra, pessoa muito conhecida em Angola e com quem eu tinha boas relações. No seu gabinete, onde nos recebeu, estavam empilhadas dezenas de caixas de discos fechadas e precintadas. Estranhámos o facto, e logo ficámos sabendo que o Dr. Coimbra era também o Director dos Serviços de Censura, e aqueles discos eram propriedade da Livraria Lello, uma das casas mais importantes de Angola, e estavam ali para ser “inspeccionados”, um a um. No gabinete estava também a Secretária da Direcção, assistindo a tudo com muito atenção, lançando a sombra protectora da sua alta e elegante estatura sobre a frágil figura do Senhor Director. O Manuel perguntou, o que faziam aos discos censurados, e logo veio a mais clara e elucidativa resposta:
“ Aqui a Dª (?) com um estilete faz dois riscos em cruz, - ric!-ric! - e depois devolvem-se para que não julguem que ficámos com algum" E o Manuel, explorando a situação:"“e quando se trata de obras em línguas estrangeira ?" "Ah! para isso temos os tradutores de francês e inglês. Se forem outras línguas que não conheçamos recorremos à PIDE/DGS. Eles têm tradutores para tudo. Calculem que já apareceram por cá, discos em Coreano! Imaginem: Coreano !!!... Mas a Pide traduziu e aqui a nossa Secretária com o seu estilete: """RIC-RIC"""evitou o pior: que pudessem chegar ao Público. Já imaginaram o perigo que seria?" Creio que não vale a pena dizer mais nada. Aliás, vale a pena sim. Entretanto o meu colega teve de regressar a Lisboa, e eu fui acabar o que faltava na Faculdade de Medicina Veterinária em Nova Lisboa. Estávamos em plena Primavera Marcelista, como referi, e já havia uma certa abertura., ou parecia haver. Quando fizemos a entrega do filme, passámo-lo na nossa sala de projecção para a Comissão de Recepção, composta por três Coroneis )?). Quando apareceu no écran o Laboratório de Química da Faculdade de Veterinária, viam-se vários estudantes em trabalho, e um de entre eles era preto. Então um dos militares, observou: "porquê só um preto ?" À sessão estavam presentes o Grande Patrão da Telecine, Galveias Rodrigues e o Director Geral da Telecine/África, Vítor Silva. Fui eu como co-autor, quem teve de dar a explicação, até porque tinha sido eu, já sem o Realizador, a filmar aqueles planos. "Porque era o único estudante preto da Faculdade," disse. O Coronel porém, não se deu por satisfeito. "Mas em Cinema ha muitos recursos, bastava vestir uma bata branca a um servente e pronto !" Aqui um desabafomeu: : "ainda bem que sou de baixa estatura. Se tivesse um metro e oitenta como tantas vezes desejei, ter-me-ia metido em muitos trabalhos. Assim, fiquei só desesperado" Ainda me atrevi a dizer que o que me tinham mandado fazer fora um documentário e não um filme de ficção. Acode o militar: " Bom, isso não seria ficção, digamos que se trataria de uma antecipação, porque.... " Já não ouvi o resto, sabia que os meus patrões estariam preocupados com a possível rejeição do filme, e eu só poderia complicar as coisas. Saí da Sala. Felizmente o filme foi aceite. E para mim foi só mais uma pedrinha no meu fígado.

segunda-feira, junho 05, 2006

A Santusa e a mão de vaca

Ano de 1932. Tinha dezasseis anos e era o mais novo dos empregados do Cinema Tivoli. Entre os meus colegas de trabalho, todos mais velhos, um Casal, a Adelaide e o Santos, de trinta e poucos anos, eram quem tinha mais paciência para ouvir as minhas conversas de adolescente, e eu. . .as deles. Invariavelmente, no fim do espectáculo, de regresso a nossas casas, percorríamos juntos uma parte do caminho que era comum,. Foi durante uma dessas caminhadas que o Santos se referiu ao Padrasto que tinha uma filha, de anterior casamento.. A moça seria mais ou menos de minha idade, e chamava-se Santusa.. Fiquei espantado com tão raro nome, que não ouvia desde os bancos da Escola onde, quatro anos atrás, acabara a Instrução Primária, e a minha Carreira Académica. Frequentara a mesma Escola, a mesma classe e a mesma Sala de aula. ( (então ainda o ensino era comum) a mais linda mocinha que os nossos olhos de criança jamais haviam visto, chamava-se...Santusa, e era a musa inspiradora dos nossos sonhos infantis; nem sempre tão infantis como isso. Mas, pareceu-me inverosímil, que no curto espaço de quatro anos, viesse a conhecer duas pessoas com um tão estranho nome, que nunca ouvira antes, nem voltaria a ouvir por mais de setenta anos,(mas isso, eu ainda não sabia). Teria a minha idade. Depois de o Santos ter feito o retrato falado, não tive mais dúvidas. Só podia ser a Santusa, a "única” Foi então que o meu Amigo Santos prometeu levar-me a jantar a casa dos Pais e... da Santusa. Esperei ansiosamente, um Século de meia dúzia de dias, e lá fomos até ao Poço do Borratem. Entrei meio canhestro, sem saber o que dizer nem para onde olhar. Mas logo a vi. Era ela com mais quatro anos, linda como antes, mas mulher aos dezasseis anos, e eu sentindo-me como no tempo da Escola, quando pela última vez nos víramos.. E percebi então que, para ela, a memória dessa remota data já se havia perdido, e junto com ela a lembrança do garoto que eu tinha sido e que, de certo modo ainda era, pelo menos na estatura. O olhar que ela me deitou, ou por outra, que passeou pela sala, passou através de min e perdeu-se sem sequer deixar um pouco de calor daqueles lindos olhos verdes e frios, que não podiam dar o que não tinham. Mas isso só mais tarde percebi.. Frustrada a perspectiva de uma conversa desfiando recordações da infância, restavam os cumprimentos da praxe, e a delicada inquirição sobre o que fazia , se gostava do emprego, enfim a conversa arrastava-se entre: ”ontem esteve muito frio”– “mas hoje, está melhor” banalidades que se dizem quando não se sabe que dizer. Para boa compreensão do que se segue, devo esclarecer que os Pais do Santos eram velhos com um ar muito conservador, formal. Nisto veio o jantar: uma enorme travessa de. . .horror: MÃO DE VACA!?. nunca em vida minha fora capaz de olhar sequer, quanto mais comer aquela coisa gorda, viscosa que devia escorregar nos dentes (suponho). De três calamidades da cozinha portuguesa: mãosinhas de carneiro, cabeça de porco e mão de vaca, é esta última, a que mais me repugna (os apreciadores que me perdoem) Não comera antes, nunca até hoje comi, nunca até ao dia final da minha vida comerei e. . .não comi naquela noite. Como sabia que, mal metesse um pedacinho "daquilo" na boca regurgitaria as refeições dos últimos três dias, disse na voz mais sumida que me lembro de ter falado: "desculpem mas não gosto de mão de vaca." Soube mais tarde – que NUNCA se deve dizer não gosto, de algo que nos oferecem. Tira-se um bocadinho, vão-se engrolando as palavras. Toda a gente percebe, mas faz de conta. Mas eu tinha quinze anos, a inocência e a franqueza de dizer aquilo que ainda não sabia esconder. Todos me fuzilaram com os olhos, mas eu só via uns lindos olhos verdes que parecia, destilarem verdete. Tirei os olhos, - e o sentido - da Santusa. Antes nunca a tivesse reencontrado. Aqueles olhos verdes e frios passavam por sobre mim sem me ver, nguém disse nada, ninguém me ofereceu um ovo estrelado, uma omelete, nada de silnciosonada. Ignoraram-me, simplesmente. Foi um jantar – para quem foi – soturno e silencioso. E ali estive durante todo o tempo, sentado à direita da dona da casa, hirto, paralisado, sem saber sequer onde pôr as mãos. Ninguém reparou mais em mim. Vi, durante o ”Século” que durou o jantar, como toda a gente se deliciava e babava sorvendo aquela coisa gorda e gelatinosa. Procurava não ver. Mal desviava os olhos de um, que logo a vista me traía caindo sobre outro. E o jantar acabou a topo, nem sobremesa, nem café, nada, só silêncio e apertos de mão e um aperto no meu coração. Porque é que no mesmo dia me havia de acontecer a Santusa e a mão de vaca!?. . .

quinta-feira, junho 01, 2006

Domingos

Chamava-se Domingos João de Almeida. A prosa que vai seguir-se não terá - não tem – qualquer curiosidade ou motivo de especial interesse. Será porventura, até maçadora; não importa, escrevo-a apenas para duas pessoas: para mim, pelo gosto que me dá o recordar, e para o Domingos, que já a não poderá ler. É, pretende ser, não uma homenagem, termo ridiculamente pomposo neste, como em tantos outros casos. É, sim, falar de um amigo que deixei de ver há cerca de trinta anos e que, hoje, teria mais de cem. Era o contínuo do Produtor de Cinema Ricardo Malheiro que me contratara para filmar uma série de documentários em Angola no longínquo ano de 1950 do Século passado. Conheci o Domingos à porta do Hotel Turismo em Luanda, quando esperava que nós saíssemos. O Domingos era preto. Íamos começar os documentário dirigidos pelo meu Camarada Carlos Marques, e o Produtor colocou o Domingos ao nosso dispor. Assim, constituíamos uma equipe de três com o Domingos a transportar o material , nada que eu não tivesse feito durante largos anos, até ser Operador. Poucos meses depois o Produtor e o Realizador regressaram a Lisboa deixando-me só com o Domingos. Eu com tão pouco tempo de África e com uma enorme curiosidade e surpresa pelo que via e ouvia, travava com o Domingos grandes conversas pelas quais pude perceber que o Domingos tinha bastante mais cultura do que os seus patrícios. Foi de uma ajuda preciosa quando nos embrenhámos nos complicados Musseques , para um novato, um pouco inquietantes. Foi aí que pude confirmar o que já tinha observado à porta do Hotel. Aproximavam-se dele outros homens, pretos como ele, numa atitude reverente, meio curvados, que lhe apertavam as mãos e se iam embora sem dizer palavra . Quando o inquiri sobre isso respondeu-me que era por ser mais velho. Anos mais tarde soube que em Angola, e noutros pontos de África se respeitava muito a velhice, a ponto de se chamar “o Mais Velho” àquele que , mesmo não o sendo, era o que sabia mais. Mas esta resposta não me satisfez pois não vi mais ninguém a fazer cumprimentos a torto e a direito. Aí pude, meses depois, fazer uma observação que julgo muito importante. Vivi em Angola 30 anos. Durante todo este longo tempo, os "pretos eram pretos,” sem sentido pejorativo . Quem queria insultar, dizia: “ Negro, Seu negro !!” Em breve se estabeleceu entre nós uma relação de confiança que nos permitia fazer perguntas de caracter pessoal. Assim soube, porque ele me disse,, que tinha trabalhado, na sua qualidade de alfaiate, com o Taxidermista do Museu de Angola , palavra nova para mim que tive de consultar o Dicionário porque, - é com vergonha que o confesso - não quis mostrar ignorância perante o ajudante preto. Eu, com a Mulher e dois filhos já em Luanda, habitámos provisoriamente numa boa casa da Produção. Essa casa tinha uma grande zona descoberta e com uns bons anexos.O Domingos tinha a família: mulher e dois filhos pequenos a cerca de quatrocentos quilómetros de Luanda, e pediu-me que o deixasse instalar-se ali com eles. Assim foi, e os garotos eram sensivelmente da idade dos meus. Devo esclarecer que o Domingos não era meu criado nem sequer pago por mim, no entanto ajudava a minha mulher a cuidar da casa, e tinha imensa paciência com os meus filhos, sobretudo com o mais novo que tinha pouco menos de dois anos. Certo dia em que o mais novo deveria ir a um Posto médico para fazer uma vacina, levei-o a ele e ao Domingos, deixei-os no Posto, dei dinheiro para o Maximbombo (autocarro) do regresso, e fui trabalhar. Ao almoço o meu filho estava com uma conversa muito complicada onde me pareceu ouvir: "carro taxi". Perguntei "o que é isso de taxi" Foi então que eu subi mais um degrau na aprendizagem dos costumes, daquele Povo, das suas sensibilidades, crenças e traços culturais. Já tinha percebido que o Domingos gozava entre os seus, de um estatuto espcial. E escutei da parte dele a justificação do regresso de taxi. Disse ele: "eu não me importo de ajudar a Senhora, lavar a loiça, cuidar dos meninos. Mas lá fóra, se os outros pretos me veem com o menino ao colo chamam-me "lambão" e riem-se de mim".Não me foi difícil compreender a sua razão. Passram-se vários meses em que contei que a sua ajuda, até que de Lisboa veio a ordem para deixar a casa e dispensar o Domingos. Como não me era possível suportar o ordenado dele, não tive outro remédio, e o Domingos partiu com a famíla para a sua terra, "além Malange" se bem me recordo, a mais de quatrocentos quilómetros de Luanda. Passada uma meia duzia de anos fui abordado na Praia por dois garotos que me disseram ser os filhos do Domingos e estavam a estudar em Luanda. Deram-me novas do Pai, daquele género : "o pai está bom". Outros anos passaram até que de dentro de um guichet do Hospital Maria Pia, uma cabeça me espreita, chama-me pelo nome me diz: "eu sou o Clemente, filho do Domingos" e foi tudo. Passam-se muitos mais anos, estáva-se nos primeiros meses de 1975, quando uma noite me entra em casa, um Capitão das FAPLA que me pergunta: "já não se lembra de mim ?" ante a minha cara de espantado acrescenta: "mas do meu Pai lembra-se com certeza" Foi então que vi o Domingos. Foi um momento de grande emoção de nós dois e da minha Mulher. Foi depois um desfiar de recordações com vinte e cinco anos. O Domingos estava velho como seria de esperar, mas seco e desempenado como sempre o conheci. Disse-me que vivia no Bom Jesus, na margem direita do Quanza onde tinha um pequeno negócio. Despedimo-nos como quem não espera tornar a ver-se. E os anos correram. Mais quatro se passaram,e por razões de familia, resolvi com grande desgosto, deixar Angola. Lembrei-me então do Domingos, como estaria ele ? "estaria ainda" ? Resolvi ir despedir-me. Peguei no carro com a munha Mulher e um Grande Amigo que lá deixei e lá morreu passados poucos anos. Rumámos ao Bom Jesus. Na povoação foram um tanto reticentes em dar a morada do Domingos. Estava-se numa época ainda não completamente pacificada, e eles não nos conheciam. Enfim depois de muitos rodeios deram-nos a indicação da casa do Domingos. Com alguma dificuldade a encontrámos. Era uma pequena construção completamente isolada no meio do mato. A loja estava fechada e tudo silencioso. Bati à poerta de casa e algum tempo depois apareceu-me o Domingos muito debilitado. Estava doente, por isso estava a loja fechada. Enfim, foi um encontro breve e comovido. Ele e o Laranjeira, o Amigo que me acompanhava, trocaram endereços. Anos mais tarde este Amigo mandou-me notícias do Domingos. Agora só resta a recordação duma boa amizade e a fotografia que se inclui neste relato de um tempo que vem dos trinta e três anos e se prolongou até aos noventa, e agora... esperemos.