terça-feira, junho 28, 2005

O EGAS

Egas é um nome fictício, como serão todos os que irão aparecer ao longo desta história. Procederei assim, embora pense que, como o Egas, todos os outros personagens já nos tenham deixado. Tudo o que vou contar se reporta a mais de sessenta anos, mais precisamente a 1936. O caso passa-se em Alfama - o meu Bairro - e quanto a localisação, nada mais direi. A figura principal do "conflito" não foi o Egas, foi "Ela". Numa história com interesse há sempre uma ela, e esta era uma garota que deveria ter os seus quinze anos - a julgar pelo tempo em que a fomos vendo crescer- mas era uma mulher perfeita. Uma Sofia Loren "avant la lettre". Oriunda da família mais pobre e degradada daqueles becos, vivia na maior promiscuídade numa casa que não teria mais do que duas divisões para um casal com vários filhos pequenos. Ela era a mais velha. Linda, com uns radiosos olhos claros, cabelo preto e tez muito branca, um corpo magnífico metido num "vestido saco", também este "avant la lettre", constando de uma peça de pano cosido ao lado com tres buracos, para a cabeça e os braços. E era tudo para esconder/revelar o corpo magnífico que já referi. E não me tomem por pedófilo, ao tempo eu teria vinte anos. Não lhe vou pôr um nome fictício porque, não me lembrando do real, corro o risco de acertar. Fiquemos pois por "Ela", que era de um descaramento incrível; quando passava por nós, os rapazes mais velhos, olhava-nos com tal descaro que nos deixava envergonhados, quase desnudados... Apresentada a primeira figura, passemos à segunda: o "Egas". Fora meu companheiro na Instrução Primária e era um garoto tímido, muito reservado, um tanto "menino da mamã", e era de certo modo um burguês num meio operário. Os pais eram considerados pela vizinhança como ricos. No meio da pobreza, quem tem um pouco mais, é rico. Havia uma certa razão para que se pensasse assim, o Pai Matias era encarregado numa Fàbrica e tinha uma modesta oficina particular onde produzia pequenos objectos que depois a Fábrica adquiria (as más línguas diziam que a Fábrica tanbém "fornecia" a matéria prima). Esta família, digamos a DªMariquinhas e o Sr.Matias, pais do Egas, moravam num rés do chão mesmo em frente a umas escadas bastante largas, formando uma espécie de anfiteatro que, lá em baixo afunilavam e acabavam em dois becos, num dos quais morava "Ela". Quer isto dizer que da casa do Egas se via a casa dela e vice-versa. E o Egas começou namorar a moça. Para facilitar a conversa, a moça punha um banquinho cá fora de forma a que ele chegasse ao postigo. Nesse tempo, namorava eu também na porta ao lado da janela da DªMariquinhas. Durante algum tempo assisti àquele inocente namoro. Até que uma noite, lá para perto da uma hora, ouvimos uma gritaria e vimos lá em baixo no beco aparecer a Mãe d’Ela em camisa, deformada pelas numerosas gravidezes. Berrava: "Bandido! Canalha. Ladrão da honra da minha filha!" Todas as janelas em volta se abriram e encheram de gente curiosa e deliciada com o espectáculo gratuito, aliás, já mais ou menos esperado. Também a DªMariquinhas veio à janela a tempo de ver - vimos todos - o Egas sair meio descomposto de casa d’Ela, arrastando por um braço uma mulher completamente nua trazendo na mão direita um trapo, talvez o tal "vestido saco". Puxada pelo braço esquerdo, lançava para trás o direito oferecendo uma simbólica resistência. Melhor, exibindo assim a plena pujança de um corpo deslumbrante, iluminado pelo luar. Ou seria a luz que irradiava daquela Olímpica nudez que iluminava a noite?
Aqui quero render homenagem à grande coragem e senso de dignidade do Egas que, pelo que eu julgava conhecer dele, eram completamente inesperadas. Arrastou a namorada até à porta de casa, certamente disposto a enfrentar o que viesse. Quando toda a gente esperava, e apetecia, um drama, com discussões, gritos e possivelmente o desmaio da DªMariquinhas, eis que esta fecha a janela, abre a porta, puxa os dois para dentro e fecha a porta... acabou o espectáculo para desespero da assistência. Grande mulher a DªMariquinhas. Algum tempo depois, passou a ver-se todas as tardes a Dª Mariquinhas sair de casa acompanhada pela moça muito arranjadinha, com livros e cadernos. Subiam a calçada a caminho da Mestra onde a mocinha iria aprender as primeiras letras de que nunca tinha ouvido falar.
Mais tarde, quando a idade o permitiu, casaram discretamente e... NÃO foram felizes para toda a vida. Mas disso não falarei.

1 Comments:

Blogger Carrie said...

Simplesmente delicioso.

2:30 da manhã  

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