quinta-feira, junho 30, 2005

Bocage, o filme

Leitão de Barros

... pelo que me vem à memória, sem nenhuma preocupação de ordem cronológica, lembro-me de um episódio passado durante as filmagens do "BOCAGE", um filme de Leitão de Barros rodado na TOBIS em 1936. O Director de Produção, isto é, o "capitalista", era o Costa Carvalho, que era de uma estupidez inultrapassável. Naquela equipa havia – como aliás era costume na época - vários técnicos estrangeiros que, mal ou bem, se faziam entender em francês. Para o tal director eram todos franceses. Para as filmagens da Taberna do Bocage foram necessárias mesas e bancos de pinho que, feitos no local, ficaram como é óbvio, com o ar de novos. Era pois necessário dar-lhes alguma patine, o que se obtinha com "vieux chènne" que se comprava na drogaria e custava para aí uns vinte e cinco tostões. Ora o tal produtor que além de estúpido também era avarento, não havia forma de disponibilizar os tais vinte e cinco tostões que em 1936 ainda eram alguma coisa. Mesmo em cima de hora e quando o Leitão de Barros estava prestes a entrar no cenário, o que iria desencadear uma tempestade como só ele sabia fazer, o Carlos Neves, irmão da actriz Maria das Neves e Chefe de Redacção do Diário de Notícias que ali estava como Assistente de Realização, entra disparado no escritório do Director e grita: "Então esse VIEUX CHÈNNE, vem ou não vem? Reacção do Produtor: "O QUÊ, MAIS FRANCESES? JÁ TENHO AÍ DOIS A GANHAR UM DINHEIRÃO. NÃO QUERO CÁ MAIS NENHUM! Isto salvou a situação, pois quando o Carlos contou ao Leitão de Barros, este em vez de desatar aos gritos como seria de esperar, riu às gargalhadas e esperou que os bancos e as mesas fossem "patinadas". Atrasaram-se as filmagens, o prejuízo foi muito para além dos vinte e cinco tostões mas divertimo-nos muito.

Outra estória me vem à ideia, passada ainda no BOCAGE, e que ilustra bem o espírito mordaz - por vezes mesmo cruel - do Leitão de Barros que era um conversador interessantíssimo (se considerarmos que só ele conversava e nós nos limitávamos a ouvir). Um certo dia, durante uma curta pausa nas filmagens, juntamo-nos em volta da cadeira de "Realizador" onde ele se recostava - lembro-me bem de que eu, simples "claquete-boy", não tinha direito a cadeira (ainda!) e estava sentado no chão em frente dele junto com outros "descadeirados". Atrás do LB e encostado à sua cadeira estava um compositor da época, cujo nome não me recordo mas que tinha a fama de não ser muito original nas coisas que compunha. Tinha aliás algumas músicas e canções nesse filme. Sucede que ele, o músico, era oficial do exército, capitão, se não erro, e prestava serviço na Guarda Fiscal. O LB apontando para trás diz: "Aqui o "fulano" consegue muito bem conciliar as suas funções de músico com as de guarda-fiscal: "Apreende, apreende, e no fim cobra os direitos". Ninguém se atreveu a rir nem a olhar para o senhor; acabou tudo com sorrisos amarelos.

Neste filme cheio de peripécias, os trabalhos prolongaram-se por cerca de oito meses. Outra a estória é esta: o Manuel Maria, como era tratado pelos amigos, (não confundir com um outro mais actual) o Bocage, regressava da Índia comandando uma força de Marinha e desembarca no Terreiro do Paço (ainda sem colunas, estávamos em 1936) e trata de marchar pela cidade com a tropa a cantar a Marcha dos Marinheiros
que ainda hoje é conhecida. Mas por uma estranha fantasia, a marcha fez todo o caminho a descer até chegar à Praça do Rossio na "Lisboa Antiga". (Aqui vejo-me obrigado a introduzir um parêntesis: Esta Lisboa antiga era um cenário que tinha sido construído para uma qualquer festa no actual Jardim das Francesinhas,junto ao Palácio de São Bento. O Leitão de Barros, que de burro não tinha nada, logo o aproveitou para os exteriores do filme. Era uma Lisboa do Século XVII, dentro de um recinto murado que chegava mesmo à actual Avenida D. Carlos I, ao tempo Av. Presidente Wilson. (as coisas que os velhos sabem!!!) Era pois um espaço muito grande e com o desnível que vinha desde a actual Rua Miguel Lúpi) e fechando aqui o parêntesis, retorno à Lisboa Antiga: e aí vêm os Marinheiros "descendo desde o Tejo" cantando a sua Marcha e trazendo, ou por outra, devendo trazer cachos de bananas espetados nas baionetas. A câmara estava montada no Largo do Rossio, nós ouvíamo-los cantar antes de entrarem em "campo", mas quando chegavam à vista, bananas nem vê-las, só vinham os talos. Foi grande indignação pelo tempo perdido e, pela parte do tal Produtor, pelo custo da fruta. Lá se mandaram comprar mais bananas, lá voltou tudo ao princípio, lá os ouvíamos cantar mas quando chegavam à vista já não havia fruta outra vez. Como é que eles faziam para comer as bananas (mesmo verdes) e cantar ao mesmo tempo? Deviam estar bem organizados! Mas o impossível aconteceu: o Leitão de Barros levanta-se repentinamente da cadeira, mete-se no meio daquela malta – e atenção, não eram "betinhos", era gente ali do Bairro da Esperança que não era para brincadeiras – pois o LB desata ao murro e ao pontapé, os tipos encolhem-se todos (complexo de culpa, certamente); compram-se mais bananas, repete-se o plano e não houve mais problemas. Profundo psicólogo o Barros!!! Mas nós quando o vimos desaparecer no meio dos homens armados de espingardas com baionetas julgamos acabada ali a carreira do realizador; e pensamos que quem devia estar contente era o Arthur Duarte que era o "regisseur geral", como ele dizia, e iria acabar a fita. Mas tudo correu bem dali para a frente.

3 Comments:

Blogger FTA said...

História espectacular...

8:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Excelente história! Se trabalhou(como parece por este texto) no Cinema Português,fosse em que funções fosse,porque não escreve uma pequena antologia das suas experiências? Não deve deixar as suas memórias só para casuais curiosos da Net. Como diz já não ser jovem,boa saúde e ânimo!

5:26 da tarde  
Blogger dudu prates said...

Estou pequisando para o meu mestrado a carreira de Fernando de Barros que trabalhou no filme Bocage. Alguma informação?

3:19 da tarde  

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