No deserto de Moçâmedes
Quando Ettore Scola esteve em Angola com Alberto Sordi, Nino Manfredi e Bernard Blier, foi preciso mobilizar uma tribo de Mucubais, pastores nómadas do deserto da Moçâmedes, para filmar "Riusciranno i nostri eroi..." Neste filme eu não colaborei como operador mas como assistente de realização e tinha como principal tarefa o contacto com os Mucubais, transmitir-lhes as instruções do realizador, isto é, pô-los a representar. No começo foi difícil fazer-me entender porque entre aquelas quase 70 almas ninguém entendia nem falava português. Ora a certa altura comecei a ver que havia um rapaz ainda novo que parava muito junto de nós e depois ia sorrateiramente para junto dos outros. Até que apertei com ele: "Ó pá, não me lixes, tu estás mesmo a perceber-me". Começou a rir-se e eu nomeei-o meu ajudante. Chamava-se Pepéte e a partir daí não houve mais dificuldades de comunicação. Comecei então a entender um pouco dos costumes daquele povo de gente bonita e elegante mas de envelhecimento muito precoce, ou não vivessem no clima duro do Deserto. Assisti a um caso curioso que se passou na sequência do abate de um boi, segundo a tradição Mucubal e que os italianos queriam e conseguiram filmar. Comprámos-lhes o boi, devolvendo-o depois de morto. Não vou entrar em pormenores que seriam chocantes, mas em resumo, eles aproveitam a carne com todo o sangue e por isso não sangram o animal, matam-no por asfixia. Horrível de se ver! Depois de esfolado o boi distribuíram pedaços de pele pelos homens e rapazes que esfregando os pedaços nas mãos com a gordura do boi fazem uma espécie de curtimento para obter sandálias, bolsas, etc. Pois estando uns tantos sentados em círculo ocupados neste trabalho, vejo que um dos rapazes novos se levanta do seu lugar, dá umas voltinhas, e passando por detrás de um outro, tira-lhe uns bocados que ele tinha ao lado no chão sem que este se apercebesse. Fiquei à espera de ver o sarilho que iria haver quando o roubado desse pelo roubo; até porque quase todos os circunstantes tinham dado pelo acontecido. Qual não foi o meu espanto ao ver que o rapaz ao dar pela falta dos pedaços de pele, olha disfarçadamente em volta e fica quieto e calado, parecia até que envergonhado. Perguntei ao meu "ajudante" como é que aquilo era possível, que ninguém acusasse o ladrão. Riu-se e disse: "Ele é que tem que tomar cuidado com as suas coisas; o outro fez muito bem e o roubado não vai dizer nada porque ainda fariam pouco dele". Como outros costumes e tradições desta etnia, e doutras, temos de as compreender e não procurar impor à força os nossos hábitos como infelizmente se fez durante séculos em África. Mas eu não me quero meter por aqui...
Num outro episódio também passado durante os trabalhos deste filme, o local era a Praia Azul, ao Sul de Moçâmedes. Era Julho, época do Cacimbo, o mês mais frio do ano, e então no Sul ainda é mais. Na cena que se filmava era preciso ir buscar ao mar o "Feiticeiro Branco" ( Nino Manfredi ) que hipoteticamente se teria atirado ao Mar de bordo de um barco onde os seus Amigos o tinham convencido a embarcar, abandonando os seus Mucubais. Estes, em grandes brados e gestos de aflição, tinham-no convencido e ele voltou. Agora faltava convencer oito ou dez de entre os vinte ou trinta homens que tínhamos levado para a praia, a meterem-se na água fria e irem buscá-lo em triunfo. Fiz todo o possível para os convencer pela palavra mas sem resultados. Mesmo vestido meti-me na água até acima da cintura (eles iriam de tanga, o que não seria a mesma coisa). Sem resultado. Então usei o supremo argumento. "Dou uma garrafa de aguardente para os homens que forem para dentro do mar". Aí as coisas já foram diferentes. Juntaram-se os dez homens em conciliábulo e sai de lá um "leader" que me vem dizer: "Tem uns que está com medo, mas a gente vai. Mas o aguardente tem de ser para todos". Achei bonito, caro mas bonito. "Bem, eu dou a aguardente logo no fim do trabalho. Agora vamos lá às filmagens". O duplo – o Zé Portugal, um rapaz de Moçâmedes com o físico do Manfredi – meteu-se na água, foi um pouco mais para o largo e depois nadou até perto de terra. Metendo-se na água até pouco acima da cintura, os Mucubais foram lá buscá-lo e trouxeram-no em grande festa pela praia acima. Estava ultrapassada a dificuldade, ao mesmo tempo que recebi uma grande lição de solidariedade que me surpreendeu. Mas... as surpresas não pararam ali. À noite, depois de lhes ter dado a aguardente, aparecem-me as mulheres: "João, os home não quer dar aguardente prás mulher, diz que é só prós home". Lá tive que ir falar com os homens para os convencer, não sem alguma dificuldade...
Num outro episódio também passado durante os trabalhos deste filme, o local era a Praia Azul, ao Sul de Moçâmedes. Era Julho, época do Cacimbo, o mês mais frio do ano, e então no Sul ainda é mais. Na cena que se filmava era preciso ir buscar ao mar o "Feiticeiro Branco" ( Nino Manfredi ) que hipoteticamente se teria atirado ao Mar de bordo de um barco onde os seus Amigos o tinham convencido a embarcar, abandonando os seus Mucubais. Estes, em grandes brados e gestos de aflição, tinham-no convencido e ele voltou. Agora faltava convencer oito ou dez de entre os vinte ou trinta homens que tínhamos levado para a praia, a meterem-se na água fria e irem buscá-lo em triunfo. Fiz todo o possível para os convencer pela palavra mas sem resultados. Mesmo vestido meti-me na água até acima da cintura (eles iriam de tanga, o que não seria a mesma coisa). Sem resultado. Então usei o supremo argumento. "Dou uma garrafa de aguardente para os homens que forem para dentro do mar". Aí as coisas já foram diferentes. Juntaram-se os dez homens em conciliábulo e sai de lá um "leader" que me vem dizer: "Tem uns que está com medo, mas a gente vai. Mas o aguardente tem de ser para todos". Achei bonito, caro mas bonito. "Bem, eu dou a aguardente logo no fim do trabalho. Agora vamos lá às filmagens". O duplo – o Zé Portugal, um rapaz de Moçâmedes com o físico do Manfredi – meteu-se na água, foi um pouco mais para o largo e depois nadou até perto de terra. Metendo-se na água até pouco acima da cintura, os Mucubais foram lá buscá-lo e trouxeram-no em grande festa pela praia acima. Estava ultrapassada a dificuldade, ao mesmo tempo que recebi uma grande lição de solidariedade que me surpreendeu. Mas... as surpresas não pararam ali. À noite, depois de lhes ter dado a aguardente, aparecem-me as mulheres: "João, os home não quer dar aguardente prás mulher, diz que é só prós home". Lá tive que ir falar com os homens para os convencer, não sem alguma dificuldade...
2 Comments:
É curioso nestas filmagens acompanhei o Zé Portugal no transporte de bebidas e gelo para o deserto.
Tenho algumas cenas filmadas por mim em 8mm.
tantos anos depois tropeço neste bolg e nesta historia. coincidencia maior é que acabo de revisitar aquelas terras e aquelas gentes.
grandes recordacoes.
Zé Portugal
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