com'há setentanos
Ano de 1939, mês de Maio, dia 13, no Santuário de Fátima. O jornalista Augusto Fraga, o operador Aquilino Mendes e eu, como seu assistente, recolhíamos imagens para o Documentário "Oito Séculos de História" a exibir durante a Exposição do Mundo Português a realizar no ano seguinte. O trabalho era exaustivo debaixo de um Sol escaldante. Em dada altura, a Natureza impôs-se-me e fui em busca de um lugar discreto e afastado. A Basílica estava em início de construção e, nas traseiras, comecei a ouvir vindos de um palheiro, uma pequena construção de meia água, gemidos, choros e gritosaflitivos. Contornei a casa. Do outro lado a parede chegaria a pouco mais de um metro de altura e era continuada por grades de madeira e por entre elas, Gente: homens, mulheres e até crianças estendiam os braços suplicantes, e davam aos olhos horrorizados dos meus vinte anos as imagens cujos sons me haviam guiado até ali. Consegui a voz suficiente para perguntar: “porque é que estão aí?” “Somos os pobrezinhos, os senhores padres não deixam pedir esmola dentro do Santuário. Prendem a gente aqui até ao fim.” Fiquei siderado. Acabara de cumprir doisanos de degredo. Vira muita coisa, o sofrimento de muita gente,mas nada tão cruel, tão desumano e por fim, tão gratuito como o que se estava a infligir àquela pobre gente. Porque o seu "crime" único, era disputar uns magros tostões aos cofres do Santuário e umas "pedrinhas" à coroa da Senhora. Aliás a Senhora não podia ver, sobretudo as crianças, de pequenas e frágeis que eram. Saí dali sem saber que fazer, vergado ao peso da minha impotência, ou até da cobardia, por não ter pelo menos, tentado arrombar aquela porta. Afastei-me angustiado e fui contar aos meus colegas. Não me lembro se o jornalista Augusto Fraga teria dito algo aos senhores padres, mas naqueles tempos poderia ser arriscado. Mas tivesse, ou não, dito alguma coisa, teria caído em saco roto porque pouco depois, os alto-falantes gritavam: “Vão ser benzidas as relíquias que os peregrinos tenham na mão e que hajam sido compradas no Santuário.” Isto é, quem as tivesse adquirido numa das centenas de barracas de ambulantes que rodeavam o Santuário ficaria a saber quea Senhora lhe passaria por cima e iria benzer a vizinha do lado. O certo é que nos ficámos com a nossa indignada impotência perante a desumanidade dos “senhores padres” herdeiros de alguns usos de remotos tempos.
Leio agora, setenta anos depois, na Imprensa, oiço na Rádio, vejo e oiço na Televisão, notícias que me transportaram aos tristes tempos e acontecimentos que acima relatei. Como é possível que em pleno Século XXl, que aliás, não se recomenda muito no que respeita a Direitos Humanos se tenha cometido a inenarrável barbaridade de “encaixotar” seres humanos, homens, mulheres e crianças por tempo indeterminado - um só dia já seria terrível - não à esconsa maneira dos senhores padres, mas a coberto de uma “Lei” ignóbil sobre a imigração ilegal. Não vale pena repetir pormenores demasiado confrangedores, a Comunicação Social já os denunciou. E foi
por ela, pela sua denúncia, que o caso foi em curto prazo resolvido. Se o não solucionaram antes não foi pois por falta de meios mas por comodismo e indiferença face ao sofrimento alheio. E essa indiferença não pode ser imputada a uma entidade abstracta, o Estado, as leis, os regulamentos. São homens quem as executa, quem vê de perto o sofrimento, e ao fim do dia voltam ao lar e acariciam os filhos, tal como os pides com as mesmas mãos com torturavam os presos, acariciavam os seus. E se os senhores padres tinham ( teriam?) o perdão Divino, estes novos carcereiros só têm (terão) a sua própria consciência. Bem haja a Comunicação Social. E se ainda houvesse Censura?
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