terça-feira, novembro 15, 2005

Carapaças

Existem inúmeros e diversos tipos de carapaças, desde a do caranguejo à tartaruga, da tartaruga, às... pessoas: para o bem e para o mal. Comecemos pelo mal que é uma forma de acabar em bem, ou o que Bem nos parece.

Contradições
“Os olhos espelho da Alma”
Quão falso é este aforismo!
Quanta beleza não esconde
o mais profundo egoísmo
-0-
Rostos há, que sob a tez
de luminosa brancura
albergam a mesquinhez
da alma mais vil e escura.
-0-
São estas contradições
que provam que quem vê caras,
também vê os corações
em que as virtudes são raras
-0-
Há bizarras criaturas
vivendo a bater no peito,
que são falsas e perjuras
e pecam de todo o jeito.
-0-
Do alheio sofrimento
Simulam sentir a Dor.
Mas é falso, é fingimento.
Não trazem Paz nem Amor.

Também há, felizmente, o outro lado da moeda bem mais brilhante e genuíno. Quase sempre escondido atrás de uma “carapaça” de fingida dureza, tanto mais difícil de afivelar quanto mais bondade se abrigar no coração. Vou contar um caso exemplar do que atrás ficou dito. Estava filmando um Documentário sobre os Serviços de Urgência do Hospital de São Paulo, em Luanda. O Director era um Cirurgião meu Amigo, Dr. Aristides Bonfim. Pessoa com ar desprendido, que quando lhe perguntavam: " Ó Dr. O que é isto aqui? " respondia: "é a barriga." Se fosse caso disso, é evidente. Mas quando falava connosco referia-se sempre aos "doentinhos" Uma noite em que o fui procurar à Casa de Saúde onde estava de Serviço, encontrei-o a falar com um internado. Depois de me ter atendido, fez questão de vir comigo até ao exterior. Presumi que me quisesse dizer algo sobre o meu mal (de que já me não recordo) mas não, veio, com voz comovida dizer-me que aquele doentinho com quem estivera a falar e a dar falsas esperanças, só teria uns poucos dias de vida. Com isto, deu-me as boas noites e voltou para dentro. Viera desabafar a sua angústia. Outro caso bem mais triste e doloroso, vou recordar, não sem antes me penitenciar por não ter guardado na memória o nome da pessoa protagonista deste episódio. Sirva-me ao menos de atenuante a minha fraca memória para nomes. Ao tempo, anos sessenta do século passado, trabalhava nos Hospitais de Luanda um casal de médicos; ele cirurgião de reconhecida competência. Ela de medicina geral. Ele era alto e magro de aspecto frágil e aparentava andar pelos sessenta anos. Ela alta e forte, andaria pelos cinquenta. Prestava serviço no Hospital de São Paulo por cujos corredores se deslocava em grandes passadas, falando energicamente e em tom autoritário. Mas não era de modo nenhum antipática.Tive ocasião de verificar o retrato que procurei traçar, aquando das filmagens de um Documentário sobre os Serviços de Saúde, em que me guiou por tudo o que era "filmável". Sempre fazendo referência às necessidades e faltas de vária espécie, sem baixar o tom de voz e sem fugir à palavra certa. Em dada altura, passando nós pela porta de uma dependência de onde vinha o choro de crianças, travou-me o braço e numa voz que eu lhe desconhecia, diz-me: "venha ver um horror". Entramos e, de entre os horrores que mais tarde presenciei durante as Guerras Colonial e Civil, não encontrei nada que se comparasse. Em cima de um balcão de mármore estava uma dezena (?) de bébés, creio que quase todos nus, não tive coragem de verificar. Soltavam guinchos dilacerantes que me remetiam para vinte dolorosos anos passados. "Têm tétano umbilical, diz-me com uma voz comovida, não há quem olhe por isto. É o resultado dos partos gentílicos em que oumbigo dos recen-nascidos é recoberto de capim amassado com fuba, óleo de palma, e tudo quanto as "parteiras" entendem, juntamente com umas rezas. E aqui estão, a morrer num sofrimento como você pode ver e sem que nós possamos fazer mais do que recolher os corpos daqueles que já não sofrerão mais." Já não filmei mais nada naquele dia. Acompanhou-me em silêncio até à porta, apertamos as mãos e parti, só fui capaz de voltar passados alguns dias. Tornei a encontrar a Drª com a sua voz autoritária e a sua passada forte. Vinha tranquila e firme. Mas eu pude ver dentro daquela “Carapaça” rígida, um coração sensível ao sofrimento que a rodeava, e que sentia tanto como se fosse o seu próprio.

3 Comments:

Blogger * ﻃ•яﻄ•Lετα * said...

Bom dia.

Esse Dr. Aristides exerceu no hospital egas moniz?

11:51 da manhã  
Blogger * ﻃ•яﻄ•Lετα * said...

E a esposa chamava-se Beatriz?

11:58 da manhã  
Blogger * ﻃ•яﻄ•Lετα * said...

Eles estiveram em Luanda durante alguns anos mas depois regressaram a Portugal (terra natal).
Se voltar ao blog, gostaria imenso que me respondesse... era importante para mim.

Muito obrigada.

12:03 da tarde  

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