domingo, outubro 30, 2005

O SOM E AS VOZES

Quando hoje, vejo e oiço filmes ou telenovelas, não posso deixar de comparar, entre outras coisas , a qualidade do Som. Hoje, os artistas, eles e elas, podem murmurar juras de amor, numa voz no limite do audível, e dando as inflexões próprias dos sentimentos que querem exprimir, e transmitir aos espectadores. No tempo em que, a pesar de tudo os filmes portugueses, foram pioneiros, décadas de trinta e quarenta do Século passado, as cenas podiam ser em termos de Imagem, muito íntimas românticas, mas quanto ao Som era tudo muito mais complicado. As juras de Amor Eterno, sussurradas ao ouvido da Mulher amada, eram "murmuradas" no tom de quem namorava para o terceiro andar. O microfone tinha de ser quase metido na boca das pessoas e estava sempre em acirrada guerra com os projectores, passeando-se diante destes, provocando sombras, por vezes em movimento, quando não se coibiam de entrar em campo, para desespero do pobre operador se não o detectar imediatamente,. e só der por ele no dia seguinte, quando na sala de projecção, toda a equipa gritar: Olhó Microfone! sob o olhar enviesado do Realizador. Outra dificuldade acrescida, era a dos diálogos com os actores colocados frente a frente .Durante todos estes anos, trinta quarenta, sempre se filmou com apenas uma Câmara, e para este caso, havia pelo menos duas soluções dependentes. da experiência do realizador e da "presilha" dos actores.: ou se colocava a câmara em frente de um deles com parte dos ombros cabeça do outro de costas para a câmara, e se registavam todas frases do primeiro que tinha o apoio das respostas do segundo. Depois, virava-se tudo ao contrário, e filmava-se o segundo interveniente. Depois, era com a montagem. Como é bom de perceber, a espontaneidade do diálogo não poderia ser grande. Mas havia ainda pior. Filmar plano a plano, andando com a câmara a saltar de lado para lado, com complicação adicional do fazer e refazer parte das luzes. Isto acontecia, e aconteceu, com Realizadores de geração espontânea. ( a seu tempo poderei citar um bom exemplo dessa "espontânea)". Voltando atrás: para facilitar a tarefa do Mondador , faziam-se planos de um e outro em voz-off , isto é a voz de um sobre a imagem do outro ouvindo... Mas havia outro facto, quanto a min, mais gravoso. Era forma "escrita" como as frases eram ditas., não tinham uma dúvida de expressão, eram ditas como se estivessem a ser lidas. Os actores debitavam o que estava escrito na "Planificação"..exactamente como "Estava escrito na Planificação". Mas aqui, quero fazer justiça a Vasco Santana, que dos diálogos decorava o sentido e depois dizia-o por palavras suas, mais expontâneas. Tendo no entanto o cuidado de não esquecer a “deixa” quando contracenava com amadores que, se estavam à espera de batata, não responderiam por tubérculo. O segundo era Jorge Brum do Canto que, escrevendo os diálogos dos seus filmes, além de múltiplas outras coisas, quando um actor lhe perguntava se podia alterar esta ou aquela palavra, costumava responder: “ Só os Lusíadas não podem ser alterados,” e lá se alterava, ou não, a “ fala”. Mas , mesmo o Jorge, escrevia frases complicadas como a que vou citar uma do filme Fátima Terra de Fé.. A cena mostrava uma sala de cirurgia, com uma junta médica em volta da mesa operatória onde era suposto estar um garoto em coma ..E as opiniões dos médicos dividiam-se entre operar imediatamente, ou aguardar mais algum tempo. E como a maioria parecia inclinar-se para a intervenção imediata, um deles, um amador ainda por cima diz, ou tenta dizer: Discordo em absoluto. O coma pode ser apenas provocado pela comoção cerebral. E neste caso, porque não aguardar uma evolução favorável da sintomatologia? Isto não se põe na boca de um inimigo, quanto mais na de um amador.. O pobre senhor ia-se esforçando o mais que podia, mas nunca conseguiu dizer tudo de uma vez. Ou se enganava no princípio, para na próxima vez se enganar no fim, depois de já se ter enganado no meio. Até que o Jorge se deu por satisfeito, e passou-se adiante, até porque havia vários planos de outros médicos, apenas ouvindo.. No fim das filmagens do dia, o Brun do Canto, pede um microfone, e grava a frase toda inteirinha...ou não tivesse sido ele o autor do "monstro". Neste filme eu tinha pedido para ser também assistente de montagem, porque tinha e ainda hoje mantenho a ideia de que toda gente que se integra numa equipa de Cinema , deveria fazer, pelo menos um estágio na sala de montagem ,com um bom Montador, e nisso o Jorge era óptimo. Mas pague bem a minha audácia, porque no dia seguinte, o Jorge vem do Laboratório com um rolinho de filme de som e diz-me: “ tome lá e meta isto na boca do (?). Dispenso-me de tentar dar uma fastidiosa lição de montagem até porque hoje já nada é assim Com muito trabalho ,lá se meteu a voz do Jorge na boca do outro que viu o filme várias vezes e nunca se apercebeu da troca. Por aqui se poderia estabelecer um paralelo entre o som daquele tempo que aliás todos achávamos óptimo. Como se acha. Hoje "o de hoje" até que daqui a algumas décadas , apareça um que... Este sim, este é que é bom. E assim será – felizmente -pelos Séculos dos Séculos ... se tudo não acabar antes.