A "fragata" do Bocage
No filme "Bocage", de Leitão de Barros, o poeta regressa da Índia comandando uma força de Marinha que desembarca da fragata "D. Fernando". Esta unidade naval já não navegava, estávamos em 1936, e estava fundeada no Tejo, frente ao Terreiro do Paço. Fizemos alguns planos a bordo, os possíveis, dado o estado precário do navio. Faltava no entanto mostrar a fragata a navegar, o que não era de modo nenhum possível. Mas, de alguma maneira, L.B. soube que o Almirante Quirino da Fonseca construíra uma réplica da fragata, com cerca de dois metros, que se destinava ao Museu da Marinha. Era uma obra de uma tal perfeição, que o cordame e as velas eram manobráveis do interior da embarcação. Bastava retirar o convés com a mastreação agarrada, meter lá dentro um garoto, industriado para fazer as manobras que lhe fossem indicadas. Isto, em termos de Museu, era um achado. E porque não fazer essas manobras com a Fragata a navegar? Pensou o Leitão. Ainda não tínhamos digerido bem a ideia, e já estávamos em Paço d’Arcos a bordo de uma "chata", uma pequena embarcação de boca aberta, a remos, e que era frequente nas praias de banhos. Meteu-se o garoto dentro do "navio", fechou-se a tampa (o convés), naquilo que bem poderia ter sido um caixão. Embarcámos quatro pessoas na chata, o Leitão de Barros, o responsável pela "maquete", o operador Bobone e eu, seu assistente. Ninguém pensou que a operação estava desde o princípio condenada ao fracasso. Só no dia seguinte, ao vermos em projecção o material filmado, é que nos demos conta. Por isso naquele dia iniciamos as filmagens vendo o velame a mover-se conforme o garoto "puxava os cordelinhos", até que a pequena embarcação, apanhando um vento de popa, aproou à Barra com uma perfeição e velocidade que atestavam a competência do Almirante. Mas foi exactamente a perfeição da maquete que impediu que a chata, carregando quatro pessoas, a acompanha-se, apesar dos esforços do barqueiro. Estávamos em Paço d'Arcos, e a barra do Tejo não ficava longe. Não chegámos a entrar em pânico porque não houve tempo. Passado um "século" de segundos, a embarcação aproou ao vento, certamente porque o tripulante continuara a mexer os cabinhos, e imobilizou-se. Foi como se tivéssemos acordado de um pesadelo. E a verdade é que acordámos mesmo, mas para a sensatez. Embrulhámos a trouxa e regressámos ao Estúdio. E que vimos nós na projecção no dia seguinte? Primeiro: A fragata em vez de estar a ser vista desde o nível da água, estava a sê-lo da borda da chata que era bem mais alta que o seu convés. Poderia ser uma vista aérea do Século XVIII. Segundo: Os balanços do barco não estavam à escala com a ondulação, que embora ligeira, era real. A fragata balançava como um brinquedo, que realmente era. Resultado prático, foi aproveitamento de um plano mais afastado e que se "filtrou" com neblina, visto muito ao longe através de um óculo. Um homem aparecia gritando: "Alvíssaras, Alvíssaras! A Nau da Índia está a entrar a Barra!" Quanto a ensinamentos, se alguns colhemos, um se sobrepõe a todos. Pensar no caixão em que se poderia ter transformado a pequena fragata, e ponderar tudo muito bem e não voltar pôr em risco de forma tão insensata a vida de uma criança.
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