sábado, setembro 03, 2005

O Hipólito guloso

O laboratório cinematográfico especializado em legendas impressas em filmes estrangeiros, nos anos trinta, era na Av. Da Liberdade num palacete um pouco acima do Hotel Tivoli, que ao tempo ainda não existia. Éramos quatro empregados, e o mais recente era o Hipólito. Para situar esta história vou, sucintamente, referir alguns pormenores deste processo de trabalho. Usávamos vários produtos químicos, nomeadamente ácidos nítrico e clorídrico, hipossulfito de sódio e gasolina. Tudo a mãos livres... boca e narinas idem. A primeira operação, consistia em endurecer a película com um banho de álcool puro e formol que lhe era dado dentro de um armário aquecido, para que saísse seco no fim da operação. Um exaustor transferia o ar saturado do interior do armário para a sala. Daí para o exterior saía, naturalmente, através dos nossos pulmões. Para bem se avaliar do estrago produzido, basta dizer que, quando de manhã ligavamos o sistema, ficavamos com a garganta a arder e os olhos a chorar. Mas passado algum tempo já não cheirava a nada, a garganta não ardia, e os olhos já não choravam. Mas se ao longo do dia entrava alguém estranho, puxava logo por um lenço e fugia para o jardim dizendo que cheirava a formol. Nós bem o procurávamos sossegar garantindo que de manhã cheirara realmente, mas que já tinha passado há muito. Quer isto dizer que a habituação nos atraiçoava e permitia que nos fossemos envenenando lenta e inconscientemente. Mas porque vem isto tudo a propósito do Hipólito? Pois vem muito a propósito sim senhor. É que nesta sala, com o ambiente descrito, estava colocada uma grande mesa de trabalho, onde comíamos os almoços trazidos de casa. E era aqui que todos os talentos profissionais do Hipólito desapareciam para dar lugar à sua enorme gulodice. Olhemo-lo. Era sobre o gordinho, cara redonda, óculos grossos, e por detrás deles uns olhos pequeninos que se iluminavam de concupiscência quando abria a lancheira do almoço. Recordava-me uma história da minha infância, "O Fradinho da mão furada", e em que eu tinha imaginado um fradinho assim. E aqui começa a tragicomédia Hipólito vs almoço. Avancemos que ele nunca sabia o que a mulher lhe tinha posto na lancheira. Mas de uma coisa tinha a certeza: sabendo a mulher da sua gulodice, não deixaria de lhe arranjar um bom petisco, ou dois. Porque o almoço do Hipólito compunha-se sempre de dois pratos. Ao abrir as marmitas, babando-se de antecipado gozo, deparava-se-lhe um dilema que se repetia diariamente. Por qual dos dois começar? "Eu gosto mais deste, é melhor deixar para o fim... mas se como o outro primeiro, depois já não tenho tanto apetite e já este não me sabe tão bem. Mas se o como primeiro, porque gosto mais, e como o outro depois, não me fica na boca o gostinho bom do primeiro". E acabava a saltitar de um para o outro durante todo o almoço e a estragar ambos, julgo eu. Mas quem sou eu para botar palavra em tão complexa matéria? Mais um pormenor a enriquecer o currículo do "fradinho". Por essa altura eu comecei a ficar doente e a perder o apetite. Tinha fome mas não conseguia engolir uma garfada. Por isso a minha mulher começou a arranjar-me uns almoços mais apetecíveis, mas mesmo assim não resultou e eu continuava a olhar para o meu almoço... e o Hipólito também. Aqueles olhinhos cúpidos não descolavam do meu prato, e o Hipólito lá juntava o meu almoço ao dele sem se importar muito com qual o gostinho que lhe iria ficar na tão gulosa boca. Mas a vida é por vezes cruel e não há bem que sempre dure. Eu acabei por ser hospitalizado e acabaram-se os almoços suplementares do Hipólito.