sábado, agosto 20, 2005

um drama animal

Angola, 1950.
Não foi um mas sim dois dramas. Do primeiro não assisti ao fim, embora o tenha podido adivinhar. Mesmo os animais selvagens, para quem o homem é o maior e principal inimigo, em circunstâncias extremas, podem sentir-se forçados a recorrer a ele. A velha estória infantil, já perpetuada pelos desenhos animados, do velho leão ferido na pata, bem pode ser corroborada por estas duas que vou contar – não com leões – mas mais modestamente com um antílope e uma zebra. Parti do Lobito ao fim da tarde rumo ao Lubango (Sá da Bandeira) numa carrinha de caixa aberta com o Inspector dos Caminhos de Ferro, Albuquerque Cardoso, e conduzida pelo Nascimento, um colega meu de Escola que não via desde o Exame da 4ª classe e que inesperadamente reencontrei nesse mesmo dia. Do Lobito a Sá da Bandeira eram cerca de 300 quilómetros por uma estrada de terra batida com tantos buracos para baixo como altos para cima. Já bastante de noite entrámos numa zona recentemente ardida. Por ali tinha passado horas antes uma queimada, e tanto de um lado como do outro, estava tudo calcinado e havia ainda restos de árvores a arder e o terreno estava coberto de carvões incandescentes. Nisto surge parado à nossa frente um Olongo. Era um macho magnífico. O Olongo é um dos maiores antílopes, a par da Palanca e do Guelengue, só ultrapassado em corpulência pela Gunga. É lindíssimo e caracteriza-se pelos cornos que são em helicoidais. O Olongo aproximou-se do carro a coxear muito (tinha os cascos queimados, concluímos), chegou junto da janela do lado do condutor e meteu o focinho dentro do carro, o Nascimento chegou a acaricia-lo. Mas não podíamos fazer nada por ele. Seguimos viagem na triste convicção de que em breve acabaria nas garras de um leão. Passado pouco mais de um ano, 1951, estando em Moçambique com o Felipe Solms eramos apoiados por Gustave Gué, suiço, caçador profissional radicado em Moçambique há mais de vinte anos. Caçava principalmente búfalos e elefantes para fornecer carne à companhia "Cena Suggar", para o que tinha licença para abater um determinado número de peças por ano. Dou estes pormenores para caracterizar bem a pessoa, como homem habituado a matar animais, portanto já com uma sensibilidade couraçada, diferente de um qualquer citadino como eu ainda era na altura. O Solms era bastante louco e teve a ideia de fazer um plano em que uma manada de zebras passasse por cima da câmara, e consequentemente sobre o operador que não era tão louco mas quase. Como eu já tinha visto touros a passar cinco vezes sobre o Virgílio Teixeira sem grande perigo e as zebras só passariam uma vez, fui na convera. Portanto, no dia em que se localizou uma grande manada de zebras num "Tando" muito amplo e propício, mandaram abrir uma cova... não xiça! Uma cova não; um buraco onde cabia o tripé da máquina ficando esta ao nível do solo camuflada com capim. E eu metido no buraco, meio sentado. Muni-me de um livro policial para me entreter durante a espera e aguardei. Claro que quando as zebras chegassem junto, isto é, quase junto, eu me baixaria mais. Enquanto isso, lá ao longe, via a manada correndo de um lado para o outro perseguida pelos pisteiros que procuravam empurrá-la na nossa direcção. Isto é, na minha! Mas esta foi uma daquelas ocasiões em que deus escreveu direito por linhas tortas. (ainda não percebi porque não endireita primeiro as linhas e escreve depois). O vento, O BENDITO VENTO, mudara e passara a soprar de mim para as zebras. Daí que elas nunca mais viessem para o lado de onde vinha o cheiro do "inimigo". Passado um ror de tempo em que li o livro quase todo, o Gué e o Solms desistiram da ideia e vieram buscar-me com a carrinha. No caminho, e quando passávamos pela zona onde as zebras tinham andado em grande correria, sai de trás de um morro de "Muxém" (em Angola chama-se Salalé, e é a formiga de asa) uma zebra ainda jovem, arrastando penosamente uma perna. Tinham passado por cima dela e sofrera fractura da anca. Pois arrastando-se veio na direcção do carro em busca de... nem ela sabia o quê. E o Gué, aquele homem calejado por anos de profissão, disse-nos: "Vou fazer uma coisa que me custa muito, mas não há remédio". Saiu da carrinha com a carabina, e nós, o Solms e eu, só ouvimos o tiro, nem olhámos. E nenhum de nós três disse palavra dali até ao acampamento. Também agora não vale a pena dizer mais nada.