O sargento bera
Estamos no início dos anos 30.
Nessa época chamavam-se "sargentos beras" aos soldados que se mascaravam de sargento para, principalmente, arranjarem namoros junto das sopeiras. Pois ficou célebre nessa altura um "Sargento Bera". Foi preso mais do que uma vez e fugia sempre. O "modus faciendi" era o seguinte: Pesquisava na zona do Estoril residências de Oficiais do Exército, relacionava-se com as criadas para saber os costumes, e principalmente a altura das férias dos donos das casas. Senhor das informações, logo que as residências estavam vazias, apresentava-se fardado de sargento, acompanhado de dois ou três cúmplices com fardas de trabalho conduzindo uma carroça cinzenta – como as da tropa – e faziam a mudança dos móveis. Claro que a vizinhança não estranhava ver militares a mudarem a casa do Senhor Oficial. Depois de várias prisões e fugas, foi parar à Casa de Reclusão Militar da Trafaria onde tinha a cela 44, do lado direito da cela 43 onde na altura "residia" eu com dois outros camaradas. Eu era o nº 4761. Apesar de ser um presídio militar, esteve de Janeiro a Setembro de 1934 quase completamente ocupado por presos políticos participantes no Movimento de 18 de Janeiro. Embora fosse proibido o contacto, e principalmente as conversas entre presos, quando se abriam as celas para irmos despejar os penicos, raramente se abria só uma de cada vez, pois isso iria demorar muito tempo. Assim tive ocasião de trocar algumas palavras com o tal Sargento Bera. Ele tinha um rosto e um olhar um pouco "porcino", salvo seja, mesmo um tanto alvar, o que, a avaliar pelos seus feitos, era enganador. Os postigos por onde nos davam os alimentos abriam na vertical, de forma que quando abertos, formavam uma pequena prateleira. Era fácil abri-los por dentro, deitar a cabeça de fora e ver parcialmente a cabeça do parceiro do lado. Desta forma falámos algumas vezes, e de uma delas ele pediu-me emprestado o fogareiro de petróleo. Quando o devolveu, a cabeça vinha muito queimada, quase imprestável; mas está bem, não me zanguei mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Dias depois pediu-me através de um dos faxinas – presos militares – um casaco emprestado. Como ele tinha fardamento militar, fiquei logo a pensar que ali ia haver grossa coisa. Mas lá emprestei o casaco. Algumas noites depois, já madrugada, ouve-se um grande reboliço, correrias, gritos e abrir e fechar de celas. Os guardas entraram na nossa, viram-nos aos três, fecharam a porta e foram-se embora. O que tinha acontecido? Segundo o que nos contou o "cabo das chaves", o Sargento Bera tinha conseguido forjar uma chave a partir de bocados muito ferrugentos da porta do nicho que na parede das celas servia para guardar o caneco dos dejectos. Essa chave abria um maior número de celas do que as autênticas. O plano de fuga era o seguinte: A capela estava em obras e ficava do lado fronteiro à zona prisional, composta por uma nave semelhante às da Penitenciária de Lisboa, com celas ao nível do solo, e numa varanda em ferro de ambos os lados. As celas 43 e 44 ficavam na varanda, perto da parede do fundo, que era totalmente coberta por um vitral com motivos religiosos. Neste havia uma porta – que se fechava e abria pelo lado de lá. Seguia-se um corredor que percorria todo o lado direito do edifício, voltava à esquerda e terminava na Capela. Os presos militares que trabalhavam nas obras andavam à vontade durante o dia, e à noite recolhiam às celas. Seguindo o plano do Sargento Bera, juntaram na Capela umas pranchas que a partir duma janela lateral venceria a distância até ao muro exterior, por cima de uma rua que rodeava o edifício dos Serviços Administrativos. Ao mesmo tempo abririam o fecho da porta do Vitral e deixá-la–iam apenas encostada. Na noite combinada, o "Sargento", metendo o braço pelo postigo abriu a porta, saiu e foi abrir as dos cúmplices. Seguiu-se o caminho até à Capela. Até aqui tudo bem. Só que a prancha mal chegava ao muro, ficava apoiada só por uma beirinha, e logo que um homem chegou a meio, a prancha fez barriga, soltou-se do muro e caiu cá em baixo com homem atrás. Os que estavam na Capela trataram de correr de novo para as celas, incluindo o Sargento Bera. E assim se gorou a fuga. Dias depois, andava um sargento (este autêntico) com um casaco na mão a perguntar "Quem é que perdeu este casaco?" Nunca apareceu o dono!
Nessa época chamavam-se "sargentos beras" aos soldados que se mascaravam de sargento para, principalmente, arranjarem namoros junto das sopeiras. Pois ficou célebre nessa altura um "Sargento Bera". Foi preso mais do que uma vez e fugia sempre. O "modus faciendi" era o seguinte: Pesquisava na zona do Estoril residências de Oficiais do Exército, relacionava-se com as criadas para saber os costumes, e principalmente a altura das férias dos donos das casas. Senhor das informações, logo que as residências estavam vazias, apresentava-se fardado de sargento, acompanhado de dois ou três cúmplices com fardas de trabalho conduzindo uma carroça cinzenta – como as da tropa – e faziam a mudança dos móveis. Claro que a vizinhança não estranhava ver militares a mudarem a casa do Senhor Oficial. Depois de várias prisões e fugas, foi parar à Casa de Reclusão Militar da Trafaria onde tinha a cela 44, do lado direito da cela 43 onde na altura "residia" eu com dois outros camaradas. Eu era o nº 4761. Apesar de ser um presídio militar, esteve de Janeiro a Setembro de 1934 quase completamente ocupado por presos políticos participantes no Movimento de 18 de Janeiro. Embora fosse proibido o contacto, e principalmente as conversas entre presos, quando se abriam as celas para irmos despejar os penicos, raramente se abria só uma de cada vez, pois isso iria demorar muito tempo. Assim tive ocasião de trocar algumas palavras com o tal Sargento Bera. Ele tinha um rosto e um olhar um pouco "porcino", salvo seja, mesmo um tanto alvar, o que, a avaliar pelos seus feitos, era enganador. Os postigos por onde nos davam os alimentos abriam na vertical, de forma que quando abertos, formavam uma pequena prateleira. Era fácil abri-los por dentro, deitar a cabeça de fora e ver parcialmente a cabeça do parceiro do lado. Desta forma falámos algumas vezes, e de uma delas ele pediu-me emprestado o fogareiro de petróleo. Quando o devolveu, a cabeça vinha muito queimada, quase imprestável; mas está bem, não me zanguei mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Dias depois pediu-me através de um dos faxinas – presos militares – um casaco emprestado. Como ele tinha fardamento militar, fiquei logo a pensar que ali ia haver grossa coisa. Mas lá emprestei o casaco. Algumas noites depois, já madrugada, ouve-se um grande reboliço, correrias, gritos e abrir e fechar de celas. Os guardas entraram na nossa, viram-nos aos três, fecharam a porta e foram-se embora. O que tinha acontecido? Segundo o que nos contou o "cabo das chaves", o Sargento Bera tinha conseguido forjar uma chave a partir de bocados muito ferrugentos da porta do nicho que na parede das celas servia para guardar o caneco dos dejectos. Essa chave abria um maior número de celas do que as autênticas. O plano de fuga era o seguinte: A capela estava em obras e ficava do lado fronteiro à zona prisional, composta por uma nave semelhante às da Penitenciária de Lisboa, com celas ao nível do solo, e numa varanda em ferro de ambos os lados. As celas 43 e 44 ficavam na varanda, perto da parede do fundo, que era totalmente coberta por um vitral com motivos religiosos. Neste havia uma porta – que se fechava e abria pelo lado de lá. Seguia-se um corredor que percorria todo o lado direito do edifício, voltava à esquerda e terminava na Capela. Os presos militares que trabalhavam nas obras andavam à vontade durante o dia, e à noite recolhiam às celas. Seguindo o plano do Sargento Bera, juntaram na Capela umas pranchas que a partir duma janela lateral venceria a distância até ao muro exterior, por cima de uma rua que rodeava o edifício dos Serviços Administrativos. Ao mesmo tempo abririam o fecho da porta do Vitral e deixá-la–iam apenas encostada. Na noite combinada, o "Sargento", metendo o braço pelo postigo abriu a porta, saiu e foi abrir as dos cúmplices. Seguiu-se o caminho até à Capela. Até aqui tudo bem. Só que a prancha mal chegava ao muro, ficava apoiada só por uma beirinha, e logo que um homem chegou a meio, a prancha fez barriga, soltou-se do muro e caiu cá em baixo com homem atrás. Os que estavam na Capela trataram de correr de novo para as celas, incluindo o Sargento Bera. E assim se gorou a fuga. Dias depois, andava um sargento (este autêntico) com um casaco na mão a perguntar "Quem é que perdeu este casaco?" Nunca apareceu o dono!
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