terça-feira, julho 12, 2005

o funeral de Bento de Jesus Caraça

Filmei o funeral do Professor Caraça com a intenção de entregar o filme ao MUD. Embora não fazendo parte da organização, tinha lá amigos e contactos. Aluguei uma câmara portátil (um Kinamo, de corda e 30 metros de capacidade) e comecei o trabalho. Para quem ainda se lembre, o Funeral foi uma coisa grandiosa, eu entusiasmei-me e não me resguardei muito (nada). Trepei ao portão do cemitério, e lá dentro, subi para o topo de um jazigo de onde podia fazer uns bons planos. Nessa altura apareceram lá em baixo três tipos a mandar-me descer. "Não posso, estou a trabalhar." Exibiram-me à distância um cartão e disseram: "Polícia". Desci, que remédio, mas continuei no meu papel. Mostrei-lhes a minha carteira profissional onde estava a assinatura do Comandante Geral da Polícia por baixo do artº da lei que impunha às autoridades o apoio ao trabalho dos repórteres. Chover no molhado, claro, como eu já esperava. Dois deles levaram-me para Esquadra dos Terramotos, o outro (o Inspector Faria, como soube depois – um tipo muito novo) levou a câmara. Na esquadra mandaram-me tirar tudo dos bolsos e foi um intermédio cómico. Os dois eram uns boçais a quererem armar-se em detectives. Olharam para o meu "espólio", e o único que tinha acesso ao dom da fala diz-me. "O Sr. no dia tal foi a Queluz". Eu pensei um bocadinho e confirmei. E ele "E não foi sozinho". Confirmei. "Fui com a minha mulher". "E o que é que foi lá fazer" "Fui para casa, eu moro lá". Mas o burro não desistia, pegou numa fotografia e viu que nas costas estava desenhada a planta duma casa e perguntou para que era aquilo. Eu respondi que andava à procura de casa e quando ia sozinho fazia o desenho para mostrar à minha mulher. Enfim cheguei a perguntar ao grunho se ele lia muitos romances policiais. Aí ele ameaçou-me: "Lá em baixo é que o sr. vai ver". Entretanto chegou um telefonema e eles mandaram-me embora, e que me apresentasse no dia seguinte na António Maria Cardoso. No dia seguinte o Inspector começou por me perguntar a quem é que eu pretendia entregar o filme. Respondi que tencionava vendê-lo presumivelmente ao MUD. "E como é que os conhece?" – Não os conheço mas esperava que eles me vissem primeiro do que os senhores. – "Mas o sr. já esteve preso. Pois estive mas os senhores constataram que o Círculo de Cinema não tinha nada de subversivo" (e aqui tremi à espera que ele se referisse à prisão do 18 de Janeiro) mas não, não era. A notícia que ele me deu sobre o filme é que estava tudo estragado. Não percebi como é que isso poderia ter acontecido, mas fiquei contente, pelo menos não poderiam identificar ninguém. Foi nessa altura que me perguntou se eu não tinha embarcado a bordo do Veleiro Cidade do Porto(!), julgo ser este o nome de um navio em que o Almirante Gago Coutinho viajara para o Brasil. Mas ele queria era saber se eu tinha ido nesse navio para New Orleans. Disse-lhe que não, mas anos mais tarde já em Luanda, fui duas vezes chateado pela Polícia com essa pergunta, e nunca soube a razão dela. Uns dias depois telefona-me o Aquilino Mendes (meu chefe/operador e dono do laboratório onde a Pide tinha mandado revelar o filme) a confirmar que o trabalho estava estragado mas não me explicou porquê. Eu fiquei a imaginar que teriam sido os meus amigos e ex colegas que o tivessem propositadamente inutilizado, mas isso não era coisa que na época se perguntasse, nem que alguém confessasse ter feito. A verdade é que o filme nunca apareceu, e a minha vaga esperança de que tivesse sido guardado por alguém do Laboratório, entregando à Polícia uma quantidade igual de filme velado, esfumou-se. Até hoje não sei o que terá acontecido.