quinta-feira, julho 07, 2005

"Ribatejo"

(1948)
Durante as filmagens de "Ribatejo", de Henrique Campos, houve várias peripécias interessantes que envolveram toiros e campinos nas lezírias de Santarém. Talvez tudo não passe de saudades da juventude e das emoções sentidas no momento em que as vivi. De qualquer forma aqui ficam:
Como é tradicional no cinema, quase sempre coexistem um "rapaz", era assim que se dizia no meu tempo, e um "bandido", ou vilão. Naquele filme o "rapaz" era o Virgílio Teixeira, que fazia de campino, e o "vilão" era o Alves da Costa, que era o "Maioral dos toiros". Ora o Maioral, por razões que não interessam agora ao caso, tentou matar o campino lançando sobre ele uma manada de 18 touros. Aqui, quero esclarecer que se tratava de touros amansados mas autênticos. Pois um dos planos a fazer consistia na perseguição do campino pela manada. Para isso, um duplo do Virgílio Teixeira (um campino verdadeiro) corria à frente da manada, e atrás desta, empoleirado no pára-choques de um automóvel grande e antigo, ia eu que filmava os toiros em primeiro plano, com o campino a correr à frente deles. Quando o duplo às tantas era alcançado, deixava-se cair, e os toiros passavam-lhe por cima sem lhe tocar. Isto pode parecer impossível, mas o homem fê-lo sem dificuldade. Mas entretanto surgiu um problema: Se se filmava muito perto, via-se que não era o Virgílio, se se filmava de mais longe não tinha emoção. Repetiu-se duas ou três vezes, até que, com um balanço maior do carro, eu caí do pára-choques. A corda que me amarrava ao tampão do radiador partiu-se (aqueles carros antigos tinham uma figura à frente, no tampão). Consegui com um braço apanhar um dos faróis, e com as pernas debaixo do carro – que felizmente era alto – fui arrastado alguns metros, conservando a câmara na outra mão sem que ela se danificasse. E ainda bem! Porque ainda ouvi o César de Sá, o Chefe Operador, gritar lá de cima: "AI A MINHA MÁQUINA!" O que lhe valeu alguns impropérios do condutor, o Ilídio Santos, que tinha uma voz rouquênha e que nós dizíamos ser "o som das fitas portuguesas". O Sá, que era uma pessoa muito educada, ficou envergonhadíssimo. Mas compreende-se a reacção: a máquina tinha-lhe custado uma fortuna, mais de oitenta contos em 1948, era uma pipa de massa! Mas felizmente nem a máquina nem eu sofremos nada. Só que chegámos à triste conclusão de que assim não íamos a lado nenhum... e aí entrou-se no reino da loucura. O Virgílio Teixeira lá deve ter pensado: "Se os toiros não pisaram o campino, não irão ter o descaramento de me pisarem a mim que sou o "galã". E assim, tomou-se a decisão de filmar uma só vez. E preparou-se a cena: Montaram-se calhas para o "charriot", e o Virgílio agarrado a uns santinhos e com uma golada de hemoglobina na boca, deitou-se no chão a uns quantos metros do fim das calhas. A câmara, montada no charriot, começaria a filmar no momento em que entrasse em campo a manada de toiros vinda da direita. Tratava-se de um "travelling" em frente. A câmara ia avançando enquanto a manada passava sobre o Virgílio, e logo que chegava a "plano próximo", o Virgílio levantava a cabeça, voltado para a câmara, e deitaria fora o "sangue" que tinha na boca. E assim se fez a tal "única vez" que se tinha acordado fazer. Só que os toiros não quizeram tropeçar naquela coisa estranha que estava no chão, e o plano não prestava. No local só tinha ficado o actor, o Marcos, que empurrava o charriot, eu na câmara, e um campino a cavalo ao nosso lado para evitar que os toiros se desviassem para cima de nós. O carro entretanto tinha-se afastado com o Campos (realizador), o César de Sá (chefe operador), o Luís Miranda (assistente do Campos) e a anotadora Virgínia de Vilhena, minha mulher e grávida de cinco meses. Quando voltaram, depois do plano filmado, e o Campos me perguntou como tinha sido, não tive outro remédio senão dizer que o plano não era bom. Qual não é o meu espanto, quando o Virgílio se dispõe a fazer outra vez, e o Campos concordou. Repetiu-se por mais três vezes, com os toiros a desviarem-se sempre, e eu sempre a ter de dizer que o plano não servia. Aqui tenho da fazer um parêntesis: Um "cameraman" tem de manter sempre uma grande calma para bem enquadrar a cena, não tremer a câmara e aperceber-se de como decorreu a filmagem, sobretudo tratando-se de um travelling. Naquelas circunstâncias, com um amigo a correr perigo de vida de cada vez que se repetia o plano, ter de ser eu o carrasco e ainda assim manter a calma necessária para não falhar os movimentos, causava-me um grande "stress" (palavra que nessa altura não se usava). Enfim, à quinta vez os toiros já se tinham habituado "àquela coisa no chão", e levaram o Virgílio uns dois ou três metros embrulhado nas patas. No fim do travelling tive de fazer uma panorâmica para a esquerda para enquadrar o Virgílio que fez o "papel", virando a cabeça e cuspindo o "sangue", que eu pensei se não seria mesmo sangue. Quando aquilo acabou e o carro chegou junto de nós, e todos fomos ver como estava o rapaz, os meus nervos rebentaram finalmente. Fugi para junto de uma árvore afastada, vomitei, mijei, e chorei como uma criança. O Virgílio não tinha nada de grave, apenas estava todo sujo de terra e palhas, e sentia umas dores nas costelas. Foi observado no Hospital e tudo estava bem. Claro que ninguém fez mais nada naquele dia. Como notas pitorescas à volta disto, sempre direi que o público na estreia não ligou a mínima a esta cena, porque, com um bom senso maior do que o que nós demonstrámos ao filma-la, deve ter pensado que aquilo era "um grande truque". Em contrapartida delirou e aplaudiu o Virgílio a pegar uma cabeça de toiro de papelão na Praça de Santarém. Moral da estória: "O público gosta de ser enganado". Uns tempos depois mostrei aquele plano a um Chefe Operador americano com quem trabalhei a seguir, e o comentário dele: "Se o actor tivesse morrido ali como é que vocês acabavam a fita?" Espírito prático este dos Americanos!

1 Comments:

Blogger Graza said...

Raramente se tem o privilégio de rir com histórias bem sérias, pois ali tudo podia ter acontecido... Não pare porque deve haver aí muito para contar da forma como o faz.

11:10 da tarde  

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