sexta-feira, julho 01, 2005

A espinha

Em finais dos anos 50 fiz um documentário sobre a exploração mineira em Angola, mas surpreendentemente, ou talvez não, nunca me foi permitido filmar na zona da Diamang, de longe as mais importantes minas de Angola, apesar do filme ter sido encomendado, e pago, pelo Governo. Como toda agente sabia, a Diamang era um Estado dentro do Estado, tinha mesmo uma Polícia própria com autoridade para prender qualquer pessoa que tivesse diamantes. Mas esta minha estória é outra. Vindo no comboio de Malange, tinha à minha espera o Director Geral da Empresa das Minas de Manganês da Quitota. O Engenheiro Cordeiro, um homem muito simpático, que me levou a sua casa nessa noite para um jantar – muito formal – o que não era de estranhar. Em Angola havia dois tipos de portugueses muito diferentes. De um lado, pessoas com muito pouca instrução e educação, que viviam de uma forma bastante simples e que no mato não tinham – aliás nunca teriam tido preocupações de requinte. De outro lado, algumas pessoas que, mesmo vivendo no mato isoladas da "civilização" não perdiam os bons hábitos e boas maneiras de quem vive em sociedade. Pois neste jantar, numa mesa comprida, sentava-se a uma cabeceira o dono da casa, nas laterais os dois filhos adolescentes do casal e no outro extremo da mesa a Dona da Casa, e eu à sua direita. Era uma Senhora muito simpática, muito moderna, que empregava alguns termos de um "calão chique". À mesa servia uma Velha Criada com todo o ar de quem servia aquela família desde sempre. E a Senhora dizia-lhe: "Ó fulana, sirva o Senhor Director Geral." E ela dirigia-se a ele e perguntava: "O Menino não quer mais um bocadinho? Come tão poucochinho!" E a Senhora falava, falava e eu a prestar-lhe toda a atenção ia-me servindo de um "souflê" de peixe que estava divino. Mas à segunda ou terceira garfada espetou-se-me no céu da boca uma espinha que me provocou uma dor horrível e me fez sentir logo o sabor de sangue na boca. Mas a Senhora estava lançada numa longa história, e eu que não podia fechar a boca, ali fiquei com o garfo no ar, de boca semi-aberta, tipo admirador aparvalhado, esperando uma pausa no discurso que só chegou quando eu já tinha engolido metade do meu sangue. Então eu lá tartamudeei um: "Comlichencha", e levantei-me da mesa perante o espanto geral e fui à casa de banho. Arranquei literalmente uma espinha do feitio e quase tão grande como um sabre. Quando voltei à sala, com toda a gente ainda perplexa, e expliquei o sucedido, a Senhora ficou consternada. "Ai mas que horror, uma espinha no souflê! E eu aqui a falar, a falar, e o senhor coitado aí a sofrer. Que horror!" E eu lá consegui esboçar um sorriso, disfarçando a dor, e disse que me iria vingar no souflê que estava delicioso, e servi-me de novo... Daí em diante senhora felizmente moderou um pouco o ritmo da conversa.

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

essa senhora que falava muito era a minha mãe que falou sempre muito até ao dia que partiu de vez. o semhor director era o meu pai e os filhos adolescentes os meus irmãos. eu a rapariga mais velha não tive o prazer de o conhecer porque estava no colégio em luanda a estudar ou ausente por qualquer outro motivo. a sua estória condiz perfeitamente obrigada

9:15 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Licha!!!!!!!!!
E eu sou uma espécie de "afilhada" da tua mãe.
Já tinha lido este relato e hoje, porque tenho cá em casa a minha mãe que está um bocadinho debilitada, resolvi voltar a procurar a Quitota na net...e encontrei-te. Acho que não te vejo há 50 anos. "Fala-me" para o gcastroferreira@hotmail.com

11:59 da tarde  
Blogger Gracinda said...

Eu não acredito, será que este anónimo é a Luisinha ( Lixa) eu sou a Gracinda a sua grande amiga. Como possoentrar em contacto consigo?
Que saudades.

Gracinda

5:06 da tarde  
Blogger Carlos Las Heras said...

Conheci O Engº Athayde Cordeiro. Vivi nas Minas da Quitota desde o seu início. Meu Pai era técnico da Companhia do Manganés de Angola.
Gostaria de comunicar consigo.
Meu endereço electrónico é "carlos.heras1@gmail.com"
Respeitos
Carlos

1:48 da manhã  
Blogger Carlos Las Heras said...

Se tiver curiosidade veja o blogue "carlosheras.blogspot.com"

1:50 da manhã  
Blogger Castro Ferreira said...

Lixa!
Há para aí 40 anos que não te vejo. Sou o Tucas

3:49 da tarde  
Blogger Unknown said...

Boa noite
Sou neto de um senhor de seu nome Américo Luís que trabalhou nas minas do manganês e falava muito do Sr. Las Heras

9:00 da tarde  

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