sexta-feira, julho 01, 2005

Izarelli

Francesco Izarelli era um operador de imagem italiano que nos anos quarenta veio para Portugal, vindo de Espanha. Era um homem tímido - nem parecia um homem de Cinema - que dava a ideia de pedir licença para viver. Tinha saído de Itália fugido ao Fascismo, e a partir daí trabalhara sucessivamente em França, no norte de África, e finalmente Espanha antes de rumar a Portugal. Da sua vivência, com três idiomas diferentes, tinha "apurado" uma língua híbrida, muito confusa, por vezes cómica e que nós chamava-mos de "izarelino". Fizemos três filmes juntos: o Fado, de Perdigão Queiroga, Camões e o Vendaval Maravilhoso de Leitão de Barros. Izarelli como director de fotografia e eu como operador, habituados ao francês e ao espanhol dos outros técnicos, falando "izarelino" conseguíamos entender-nos, convencido ele que era português que falava. Daqui nasceram alguns episódios cómicos que sempre "refrescavam" o ambiente, por vezes pesado, dos filmes do Leitão de Barros. No estúdio da Tóbis, as pontes de iluminação eram de montagem muito rudimentar, quase andaimes das obras, daí que, durante a filmagem propriamente dita, os electricistas não se pudessem mexer; se o fizessem os projectores abanavam, obrigando a repetir o "plano". Num dia em que isso se repetiu mais que uma vez, o realizador gritou "corta", o operador de som desligou os microfones, eu cortei a câmara, o chefe electricista desligou as luzes e o Izarelli indignadíssimo gritou para os electricistas: "No hé dito de non passearse sobre las pontes essas? És que non hablo português puro?"

De outra vez filmavam-se os grandes planos do António Vilar, o "Camões" na batalha de Ceuta... em Torres Novas, com o apoio da Escola Prática de Cavalaria que cedeu os soldados e os cavalos.(Entretanto um soldado ficou ferido e um cavalo desapareceu). Os planos foram tomados pelo sistema de "Transparência". Num ecran translúcido projectavam-se imagens anteriormente filmadas no exterior, em frente, a câmara enquadrava o actor em plano médio (pela cintura). Do lado de lá do ecran desenrolava-se a Batalha (real) e o Vilar, envergando um gibão da época, mas em cuecas, escarranchado numa tábua com crinas de sisal, com as rédeas numa mão e empunhando uma espada na outra gritava como um possesso, enquanto "espadeirava" à esquerda e à direita. Tudo muito "dramático"! Frente ao actor, a alguns metros de distância, convenientemente protegida por uma rede estava uma enorme ventoínha que faria ondular os cabelos do Vilar e as crinas na ripa de madeira. Só que no momento crucial não houve vento que chegasse ao "Camões". Os cortes do costume, pandemónio geral, porque desta vez seria mais complicado recomeçar por causa da "transparência". Busca-se a causa... e encontra-se o Apolinário, o guarda da noite que de dia gostava de assistir às filmagens. Estava especado à frente da ventoinha. Aí o Izarelle explodiu de indignação: "Apolinário! Ponerse delante da la ventoínha essa. Que ARROGÃAAANCIA!"

Quando se filmava o Fado, soubemos que a Mãe da Amália tinha sido operada, e o Izarellie preocupado, perguntou-lhe: "Tua Madre foi operata à apendiquisis?" A Amália, intrigada, perguntou-lhe como é que se dizia aquilo em italiano. "Apendicite", disse ele.