Fados

Em finais dos anos vinte, princípio dos anos trinta do século passado, era habitual nos Bairros Populares (por Lei não havia pobres) organizarem-se umas "verbenas" para angariação de fundos para as Juntas de Freguesia, que todos os anos "vestiam" um grupo de crianças, algumas já com mais de dezoito anos, dizia-se. Mas eu não creio. Aos dezoito anos, são para vestir? Mas de uma forma ou de outra lá se faziam as tais verbenas. Construía-se uma espécie de palco onde os artistas populares exibiam as suas artes, isto é, cantavam o fado. Este era o atractivo para que as pessoas acorressem e gastassem os seus magros escudos nas rifas da quermesse e na tombola do açúcar onde o prémio, se ganhassem, era um quilo de açúcar. Pessoas havia que chegavam a comprar um quilo pelo preço de dois, ou mais. No Castelo de São Jorge havia todos anos uma verbena muito concorrida pelas gentes de Alfama e da Graça. Não tinha lugar dentro do Castelo, mas sim numa rua ao lado onde ao cimo fazia um pequeno Largo (creio que é onde está hoje a porta de acesso Fortaleza). Além dos fadistas, a festa era abrilhantada por grupo musical geralmente composto por três ou quatro banjos e bandolins. Eles tocavam e nós dansavamos. Nós é como quem diz, os rapazes do Castelo, porque nós, os de fora, quando nos atrevíamos a tirar uma moça para dansar -no caso raro de ela aceitar- tínhamos de correr rua abaixo a toque de porrada. Descrito o ambiente "histórico", vamos aos fados. Eram geralmente cantados por fadistas muito castiços com letras muito populares. Alguns cantavam bem, outros faziam por isso. De entre os que cantavam bem, destaco o Frutuoso França, que trazia por vezes umas letras que não era muito saudável cantar naquele tempo. Das letras audíveis, isto é, sem perigo, destaco duas que, pela singeleza e ingenuidade me parecem dignas de pública consagração:

ANABELA
Anabela era um mimo de formosura,
a Moça mais bonita em todo o Monte,
e numa noite fria e muito escura
pegou na cantarinha e foi à fonte.

Mas ao passar na ponte, a Anabela,
e já perto da azenha do moínho,
viu três enormes lobos junto dela
barrando-lhe a passagem, o caminho.

Julgando ter ali o fim da vida,
tremeu a Donzela mas, deveras,
não tendo outro caminho, outra saída,
passou afoitamente pelas feras.

E os lobos nem sequer se incomodaram,
nem o instinto feroz se revelou,
quem sabe se até mesmo murmuraram:
"Que linda rapariga que passou".

Mas se fossem três homens, eu sei là
se escapava a donzela, é bem de ver.
A tentação da carne é muito má,
e há homens que são feras por prazer

(aqui repete)

A tentação da carné muito má!
E há homens que são feras por prazer.


um outro fado chamava-se:

"PÁRA-RAIOS NAS IGREJAS"

Pára-raios nas Igrejas,
pensai bem, Oh Fariseus,
se a Fé recorre à Igreja,
é que não tem Fé em Deus.

Pra ser verdadeiro crente
nos bons princípios cristãos,
quando ao Céu levante as mãos,
confie no Omnipotente.

Deus é bom, Deus é clemente
tem intenções benfazejas,
e razões mais que sobejas
pra nos tratar com Amor.
Não é pois preciso pôr
Pára-raios nas Igrejas

Porém há padres que, enfim,
seguindo alheios exemplos,
arvoram por sobre os Templos
essa invenção de Franklin.

Deus sem princípio nem fim
tem pavor dos raios seus,
que não ferem só ateus
mas os seus crentes a esmo.

Deus tem medo de si mesmo
Pensai bem Oh Fariseus.
A ciência, todavia,
cada vez mais triunfal
sobre esse Deus Imortal
vai-se impondo dia a dia.

A sua luz irradia
entre esforços giganteus,
que dizem que nós, Pigmeus
não somos de Deus lacaios.

Quem tem Fé num Pára-raios
É que não tem Fé em Deus.