terça-feira, julho 05, 2005

Lobito


A primeira filmagem aérea que fiz foi sobre a cidade do Lobito em 1950. E optei por este tipo de imagem porque o produtor para quem eu trabalhava conseguira convencer o Presidente da Câmara, que era simultaneamente Comandante do Porto, a encomendar, com o apoio das Forças Vivas da terra, um Documentário de 600 metros - 20 minutos - em vez dos habituais 10 minutos. Isto é: Duzentos contos em vez de Cem (era muito dinheiro em 1950). Aliás, tínhamos acabado de fazer um outro filme em Luanda, cidade muito maior, e só com os 10 minutos.
O Lobito era uma cidade muito bonita, com uma linda baía e um importante porto. Tinha uma avenida muito comprida junto ao mar, na Restinga, com várias vivendas modernas, e tinha depois os Bairros da Caponte e do Compão com poucos prédios e grandes espaços. O resto eram mangais. Difícil portanto encontrar assunto para tanto filme. A vista aérea seria assim uma chance para gastar mais algum tempo, filmando do ar o que depois se iria mostrar de outros ângulos em terra. O único avião disponível na altura estava em Benguela, a cerca de 30 quilómetros do Lobito. Fui pois a Benguela, e o Aéro-clube cedeu o aparelho. Baptizado com o nome de um médico, Dr. Frazão, o avião dava apoio sanitário às pescarias que se estendiam no litoral de Benguela quase até Moçâmedes. Era vermelho, e tinha na fuselagem um disco branco com uma Cruz Vermelha. Era um bimotor monoplano, de asa baixa e "cockpit" fechado, e só com um lugar ao lado do piloto. Quer dizer: não tinha uma porta lateral que pudesse ir aberta enquanto voava. Teria, e tive, de me acocorar sobre o assento e filmar por cima do motor direito com a interferência da élice num canto da imagem. Enfim, foi o melhor que se conseguiu. O piloto era o Fragoso, mulato de Benguela com quem selei naquele dia uma amizade que durou mais de trinta anos. Tantos quantos a vida depois lhe concedeu.
Descolámos de Benguela, viemos para o Lobito, filmámos tudo o que eu queria e ainda fomos filmar a Catumbela, uma pequena vila a meio caminho entre as duas cidades. Filmámos as plantações de cana de açucar da Cassequel, enfim: Começámos a "encher chouriços". Depois rumámos a Benguela para aterrar no aeródromo de onde tínhamos saído – um campo de terra batida não muito liso – mas que o Fragoso conhecia bem. Ao accionar o comando eléctrico que descia do trem de aterragem... não aconteceu nada. O trem continuou recolhido. Mas o Fragoso não perdeu a calma, "Isto é da bateria que está fraca, mas não faz mal, sairá mecanicamente". Dito isto meteu um dedo numa argola que havia no chão entre os nossos dois assentos, puxou e... nada. Aí o Fragoso ficou zangado: "Aqueles sacanas da manutenção não são capazes de pôr o avião sobre cepos e experimentar o trem, agora esta merda está ferrugenta e não funciona!" "Então e agora?" atrevi-me eu a perguntar. E o piloto, já com a calma recuperada respondeu-me: "Esteja descansado que cá em cima não ficamos". Como é de calcular, fiquei descansadíssimo. "Bem, vamos dar mais umas voltas para acabar a gasolina e aterraremos de papo, o mais que pode acontecer é partirmos as pernas." Eu, como se calcula, estava cada vez mais descansado! Resolvi então dar o meu contributo. Meti todos os dedos que pude na tal argola, puxei, puxei, puxei, ouviu-se um grande barulho, (julguei ter arrancado o fundo ao avião) mas a ferrugem cedeu e o trem lá saiu. Aterrámos normalmente, fomos beber um copo e ficámos "amigos de infância".

Ao longo dos anos tive ocasião fazer mais filmagens aéreas, não só com o Fragoso mas também com outros pilotos. Nos anos 60, já o meu amigo se tinha mudado para o Lubango onde pilotava o avião do Governor do Distrito. E não resisto a relatar um caso anedótico. O Fragoso tinha um carro descapotável, e no "tablier" tinha um cartão de visita em prata onde estava escrito : "José Grangeio Fragoso, piloto de aviões, contratado pelo Governo do Distrito do Lubango como motorista". Assim era a burocracia. Como não tinham criado o lugar de Piloto, rodearam a questão contratando-o como motorista. Eu conhecia bem o Governador, desde o tempo em que era Administrador do Concelho em Vila Nova, perto de Nova Lisboa. Curiosamente ele chamava-se Celso Vila Nova. Era um homem extremamente simpático e prestável, e já me tinha cedido o avião de outras vezes para filmagens ou apenas para deslocações. Pois mais uma vez fui ter com ele, e quando entrei no Gabinete estava ele em conversa telefónica: "Mas ó colega, isto não pode ser, você e os outros Governadores têm de se impor e conseguirem também um avião para o Distrito". A conversa continuou e eu apercebi-me que se tratava de um pedido de cedência do aparelho... "Estou lixado", pensei eu. Quando finalmente terminou o telefonema, voltou-se para mim, mas ainda a falar do assunto. Até que me perguntou: "Então e o que é que o traz por cá?" E eu ri-me... "Já sei, é por causa do avião não é? Você sabe que eu lho empresto sempre, mas é que agora o Fragoso está de férias". E digo eu: "Mas isso não é problema eu trouxe o Fragoso comigo. Ele está ali fora." Aí foi a vez de ele se rir, e eu lá consegui mais uma vez o avião.
No dia seguinte descolámos de manhã cedo para sobrevoar a estrada em construção entre Sá da Bandeira(Lubango) e Serpa Pinto(Menongue), a capital do Cuando-Cubango. Filmámos os vários troços em diferentes estados de construção, com maquinaria pesada em acção, fazendo passagens a baixa altitude, o mais lentamente possível, não sem algum susto do pessoal de terra. Mas teríamos de filmar também em terra, junto das máquinas e das obras. Fomos pois em busca de um campo de aviação que o Fragoso sabia existir, ou ter existido, por aquela zona. O "perto" e as distâncias em Angola são sempre muito grandes. Mas lá fomos encontrar o estaleiro da Construtora junto de um antigo campo de aviação. Ainda lá permanecia o mastro onde estivera a "manga" de direcção do vento. O Fragoso fez um voo rasante para avaliar o terreno e depois demos a volta para aterrar. O campo estava muito mal tratado, cheio de capim, já não era para aviões. Mas mesmo assim lá aterrámos... Primeiro passando sob um fio telefónico que ia do mastro às barracas do estaleiro. Depois tropeçando num cano de água encoberto pelo capim. E por fim gastámos a pista quase toda. Mas tudo acabou por correr bem. Conduziram-me depois por estrada até às frentes de trabalho onde fiz as filmagens que tinha programado, e ainda voltei a tempo de me sentar à mesa e comer os incontornáveis bifes com ovos estrelados e batatas fritas. Para a descolagem, o Fragoso pediu na obra uma carrinha com conta quilómetros em centenas de metros, e foi percorrer toda a extensão da pista para saber se teria ou não o comprimento suficiente para descolar. Se não tivesse, dizia ele, havia ali máquinas suficientes para acrescentar mais uns metros à pista. Mas isso já implicaria ficarmos ali mais um dia. Mas chegava. ( chegava!?) Despedimo-nos, fomos para a cabeceira da pista e começámos a rolar. O monomotor começa sempre a rolar caído para trás, com a cauda assente no solo, por isso quem vai ao lado do piloto não vê o terreno à frente. O piloto também não vê, mas esse "sabe" o que lhe está pela frente. Eu apenas sabia que lá à frente, logo depois do fim da pista, havia uma mata bastante alta. Quando o piloto achou oportuno, puxou o avião para tirar as rodas do chão. Aí a corneta de alarme começou a tocar, não tínhamos ainda velocidade para subir. Então o Fragoso deixou correr mais uns metros. Mas aí já o avião ia horizontal e eu podia ver a parede de árvores à nossa frente a aproximar-se de nós à velocidade do avião, mais a do meu susto. Mas o Fragoso quando achou oportuno puxou então definitivamente o avião e passámos mesmo à justa por cima das árvores. Afinal a pista tinha ou não o comprimento necessário à descolagem? Primeiro, tinha (teria) se estivesse compactada, lisa e sem capim. Segundo, não tinha, porque o piso era irregular e cheio de capim a retardar o andamento. Isto é, era de bom tamanho mas de fraca qualidade. Não foi esta a minha última viajem naquele avião e com aquele Piloto. Mas outras, como não meteram sustos...

1 Comments:

Anonymous Bruno Vila Nova Ramalho said...

Sem dúvida outros tempos, achei curioso ter encontrado alguém a falar na internet do meu tio-avô (celso Vila Nova) que eu não tive oportunidade de conhecer.
obrigado.

5:35 da tarde  

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