sábado, julho 02, 2005

Caracul

(E a praga de lagartas que fez parar o combóio)

Quando cheguei a Angola, em Janeiro de 1950, o primeiro trabalho que fui fazer foi sobre a criação de carneiros Caracul, que se estava a iniciar no deserto de Moçâmedes. Em Luanda já estava à minha espera o meu colega e amigo Carlos Marques que iria ser o realizador. Eu seria o operador. Tomámos o avião para Moçâmedes onde chegámos três horas depois, e teríamos de apanhar um combóio no dia seguinte muito cedo. Mas a linha de Caminhos de Ferro tinha sido levada pela cheia do Rio Béro - um dos dois rios da região. O outro é o Giraúl. A solução foi embarcar às três horas da manhã num ronceiríssimo "gasolina" que atravessou a Baía de Moçâmedes até ao Saco, no lado norte, onde chegámos por volta das sete horas. Aí, já para lá da foz do rio, esperava-nos o combóio. Era um combóiosinho de contos infantis, a bitola era de 60cm, chamada linha "Décauville", como a das vagonetas das minas, e tinha uma carruagem de 1ª Classe para 8 passageiros. Mas este "trensinho de brinquedo" conseguia subir a Serra da Chela até Sá da Bandeira (Lubango) a 1700 metros de altitude. Mas o problema ali não era de trepar... Embora tivéssemos ultrapassado o Rio Béro, passando pelo mar, tínhamos ainda pela frente o outro rio, o Giraúl, que também tinha transbordado e agora cobria a linha. Logo à saída da estação, poucos metros à frente, a linha tinha ficado submersa. A discussão entre os técnicos era se a linha ainda lá estaria, e a que profundidade. Ou se a água a tinha levado ou deslocado do seu lugar. E foi aí que nós, o Carlos e eu, - com meia dúzia de dias de Angola – aprendemos como se resolviam as coisas "à moda de África". Mandava-se um homem à frente do combóio - um preto, claro - a apalpar com os pés para "ver" se a linha lá está, e o combóio ia andando atrás de vagarinho. O maquinista vai olhando para as pernas do homem e, segundo a altura que a água atinge aquela sonda humana, assim a composição segue em frente ou faz marcha atrás. Durante os 30 anos em que percorri Angola de lés lés, atravessei muitos rios por este processo. Daquela vez tudo funcionou a contento, e depois de duas ou três dezenas de metros já estávamos em seco e lá fomos fazer 78 quilómetros até ao Posto do Caraculo. Levámos muito tempo, já não me lembro quanto, o dia estava triste e chuvoso. Depois de vários anos de seca, (aquilo é um deserto) nesse ano choveu muito. Chegados ao apeadeiro do Km 78 – é assim designado nos mapas de Angola – não estava ninguém à nossa espera. Nem vivalma. Mas o combóio arrancou... Eis que se aproximava a grande velocidade um carro preto todo fechado, mais parecendo um carro funerário, e dele sai uma criatura alta e forte envolta num impermeável preto, óculos escuros e capacete colonial. A impressão para dois inocentes, com poucos dias de África, não podia ser mais desoladora. Subitamente abre-se a porta trazeira da "station", e nós já a imaginarmos um caixão, quando saem de lá... cinco crianças! Foi como se tivesse de repente nascido o Sol. Que alívio! Entretanto a tal figura "sinistra" tira os óculos e estende-nos mão, "Santos Pereira, Director do Posto". Três das crianças eram filhas dele – dois rapazes e a menina – e os outros dois eram os filhos do Dr.Pablo, um outro veterinário, como o nosso anfitrião, e de quem vim mais tarde a ficar amigo, ver crescer os filhos(x) e conhecer os netos. Fomos muito bem recebidos e bem tratados durante o tempo que lá estivemos. Quase três semanas. E vale a pena relatar dois acontecimentos.
Nós deslocávamo-nos sempre num Jeep Willys da 2ª guerra conduzido pelo Dr. Santos Pereira que "guiava à moda de Angola", isto é, sempre depressa. Pois numa ocasião em que filmávamos uma manada de zebras, que procuravam os caminhos mais difíceis para mais facilmente se livrarem de nós, ao passarmos sobre umas pedras "faca", que são pedras que saem um pouco acima do terreno, e afiadas pelo vento, que no deserto sopra quase sempre no mesmo sentido. Pois uma dessas "pedras faca" cortou um pneu da frente do jeep que se virou e nos "cuspiu". Bateu com o radiador e o volante no chão e voltou a ficar direito. Foi uma grande sorte, pois estávamos a cerca de 50 quilómetros do Posto. Felizmente não sofremos nada grave, umas escoriações ligeiras, um dente partido (o Carlos) e eu com um braço ligeiramente inchado. Nem a máquina de filmar sofreu nada. Apenas se partiu uma patilha colocada para proteger uma peça realmente importante – bem estudada coisa! Voltámos para o Posto e quando chegamos a casa, era meio dia, e o SantosPereira faz-nos outra surpresa, resolveu abrir uma garrafa de Champanhe...

Naquele ano, porque tinha chovido abundantemente, havia muito capim (erva) o que tornava o deserto muito bonito, com um capim muito fino e quase branco, com o verde negro das espinheiras a contrastar. Pois nessa altura apareceu uma enorme mancha de lagartas com alguns quilómetros de largura, paralela à linha férrea. Isso estava a levantar uma grande celeuma entre os criadores de carneiros com receio da destruição do capim. Entretanto as lagartas atingiram o aterro do Caminho de Ferro que tinha ali quase 20 quilómetros, e começaram a subi-lo. Mas no aterro, que era recente, não crescia ponta de capim. As lagartas foram-se arrastando pela barreira acima mas por falta de alimento ou por ter chegado o momento da metamorfose, amontoaram-se sobre os rails numa extensão de vários quilómetros e ali morreram. Quando o combóio vindo de Sá da Bandeira chegou àquele ponto, começou a patinar e não andou mais. Mais uma ocasião para resolver a dificuldade à "moda de África": uma brigada de serventes dos Caminhos de Ferro munidos de vassouras feitas com feixes de capim, marchavam à frente do combóio varriam a linha. Este combóio, ou melhor, esta África, ou melhor ainda, estas duas coisas juntas eram um espanto e uma realidade nova para nós. Enquanto estivemos no Caraculo, tanto o Carlos como eu escrevíamos para a família em Lisboa, duas ou três vezes por semana, e quando ouvíamos o combóio a aproximar-se do Apeadeiro, o Dr.Santos Pereira levava-nos no jeep a pôr as cartas no correio. Uma tarde, distraímo-nos, e já não fomos a tempo. Pois o ele meteu-nos no jeep, largou pelo deserto naquela velocidade do costume, ultrapassámos o combóio mais à frente e, alcançado o aterro de que já falei, subimos o talude e pusemo-nos no meio da linha a esbracejar. E o combóio parou. O maquinista com a cabeça de fora: "Boa tarde senhor doutor, então o que há?" e o Santos Pereira: "Boa tarde. É que estes meus amigos têm aqui cartas que querem mandar para a Metrópole e chegaram atrasados ao "78". E o maquinista: "Não faz mal, entreguem ali ao condutor". Fomos ter com o condutor do combóio, entregámos as cartas e o dinheiro para os selos, que ele lá as poria depois no correio em Moçâmedes com destino à "Metrópole". E o combóio lá partiu...
(x) um deles é hoje veterinário em Grândola.