na Prisão (2)
Há pouco tempo tive ocasião de ver numa revista uma fotografia de 1918 mostrando os alemães residentes em Portugal que, por causa da Guerra, tinham sido "internados". Fiquei a saber que o tal "internamento" foi exactamente na "minha" caserna, na Fortaleza de São João Baptista, nos Açores. Na fotografia podia ver-se a caserna em toda a sua extensão. Pude reconhecê-la sem sombra de dúvida, com os seus janelões altos do lado esquerdo. Lembro-me que a parede do lado contrário tinha a todo o comprimento um lambril - uma régua de madeira larga e forte pintada de amarelo. As camas enfileiravam-se ao longo das paredes, umas por baixo das janelas, o que permitia aos "utentes" ler na cama, e as outras do outro lado. Nestas era difícil ler deitado, até que houve alguém que se lembrou de virar as cabeceiras para o centro da sala, isto é, para as janelas. Assim se criou o chamado "Movimento dos Invertidos", e devo confessar que também aderi e que não houve discriminação por isso. Mas estou a desviar-me do rumo: O segundo buraco. O que foi aberto na parede à altura das mesas. Aqui é indispensável dizer que, a cerca de um metro e sessenta de altura, corria toda a parede uma prateleira larga onde arrumávamos as malas (que encobriam o buraquinho das comunicações) e por baixo dela havia, também a todo o comprimento, uma régua de cabides de madeira. Essa régua era portanto paralela ao lambril, que coincidia exactamente com a altura das quatro mesas que ocupavam o meio da sala. Depois de acertarmos as coordenadas pelo método já usado no infausto primeiro buraco, começou a escavação. Mas um buraco em 60 centímetros de parede, com largura e altura para passarem pessoas, algumas delas corpulentas, (era impensável não pensar nos gordos), levava tempo e produzia muito entulho. Como não seria possível abrir e fechar o buraco num só dia, e como infelizmente só havia ali ateus, não pudemos entregar-nos nas mãos de Deus. Entregámo-nos portanto ao nosso destino, socorrendo-nos de um capote alentejano, que pendurado por cima, tapava o buraco enquanto íamos ao recreio, não fosse entrar algum guarda, o que não era muito comum. Só quando havia buscas, que eram muito espaçadas aliás, e já tínhamos sofrido uma pouco tempo antes. Havia entre nós três alentejanos que tinham mais capotes, e era nesses que levavam para o recreio os sacos com o entulho que depois espalhavam o mais possível para que se não notasse a diferença de cor da terra. Entretanto "fabricou-se" uma prateleira semelhante às outras, mas esta mais estreita, que serviria para dissimular o buraco. Mas como poderíamos nós instalar uma prateleira num sítio de onde tínhamos removido a parede? Construindo uma parede de pôr e tirar. O buraco tinha sido entretanto acabado e era limitado em cima pela régua de cabides, em baixo pelo lambril, e os lados foram alisados de forma a apresentarem duas rectas como se fossem ombreiras de porta (nestas casernas havia carência de intelectuais mas não faltavam operários). Aproveitámos dos caixotes que nos serviam de escrivaninhas algumas tábuas com as quais fizemos o bocado de parede que faltava. Tinha a dimensão certa para encaixar no vão – já não é correcto chamar buraco a uma obra tão apurada. E aproveitámos fios de serapilheira das enxergas e gesso. Gesso!? Gesso numa prisão!? Começam talvez a tomar-me por mentiroso, ou pior ainda por senil, e a pôr em dúvida o meu relato. Mas não. Encomendámos o gesso a pretexto de fazer umas moldurinhas muito toscas e ingénuas, moldadas em pratinhos metálicos com alguns relevos e que, com fotos ou desenhos, mandávamos através dos guardas a amigos e conterrâneos de outras casernas. Feito o desvio, a bem da credibilidade, voltemos aos fios de serapilheira e... ao gesso. Na caserna do lado "morava" um camarada estucador que transformou tábuas em "paredes", de ambos os lados, mas o gesso era mais escuro e amarelado do que a cal da parede circundante. Para caiar aquele bocado de parede falsa utilizámos o giz do quadro negro da Escola que tínhamos organizado. Eu era professor de primeiras letras, não dava para mais. Como já disse, havia poucos intelectuais, e quem me ensinaria a mim? Mas aprendi nesses dois anos de "escola" muita coisa com outros que de letras sabiam menos do que eu. Mas continuando: Pregámos duas ripas verticais nos lados da "tábua/parede" para servirem de batente e esconderem as juntas entre as duas paredes, a falsa e a verdadeira. Na horizontal colocaram-se três pequenas prateleiras muito delicadas. As ripas verticais tinham em cima e por trás umas chapinhas de zinco que se enfiavam por baixo da ripa dos cabides, e em baixo apoiavam-se no lambril e eram presas com dois pregos curvos, que pareciam estar cravados mas que se tiravam facilmente com a ponta de uma faca para poder retirar a falsa parede e abrir o buraco. Para facilitar a passagem de um lado para o outro, colocávamos uma das mesas encostada ao buraco, que tinha sido feito de propósito a essa altura, e estendidos em cima dela éramos empurrados de um lado e puxados do outro. Tivemos também o cuidado de pôr sempre uma pequena tábua sobre a régua do lambril para que este não fosse gasto pelo roçar das nossas roupas ao passar. E ainda um outro requinte de precaução. Para evitar o som oco, quando os guardas nas buscas batessem na parede à procura de esconderijos, fizemos uma caixa fixada às costas da prateleira que enchemos de entulho para que parecesse maciço. Ficou uma obra perfeita. Até à minha libertação não tinha sido descoberto. Pelo Natal, pedimos que nos deixassem a luz acesa até mais tarde e autorização para fazer uma festa. Mandámos vir através dos guardas uma guitarra que havia na caserna do lado, e à noite o guitarrista passou pelo buraco e veio tocá-la do lado de cá, enfim, na nossa caserna era uma grande algazarra e nas outras o silêncio era sepulcral. Aquela simbiose cerebral de GNR com carcereiro, não deu para desconfiar de nada.
Há ainda a estória de um outro buraco, este um verdadeiro túnel.
Como deixei dito lá mais para trás, também se passava do rés do chão para o primeiro piso, o nosso. A caserna de baixo era composta por três divisões, sendo a de entrada a maior, e era o dormitório. A seguir havia uma pequena divisão assoalhada que servia de sala de jantar. E por fim uma cozinha. Esta tinha várias prateleiras bastante sólidas que eram óptimos degraus para se chegar ao teto, cortar umas tábuas, fazer delas uma tampa. Nós, cá em cima, fizemos o mesmo com o soalho. Assim se estabeleceu a ligação. Foi através desta ligação que eu vim a conhecer o camarada Bento Gonçalves, quando ele chegou de Lisboa. Chegou no barco que cinco dias depois me levou de volta à Liberdade. Ele, infelizmente, seguiu para o Tarrafal de onde só voltou depois de morto.
Enfatizei há pouco o chão assoalhado. É que foi por baixo dele que começámos a abrir um túnel em direcção à muralha, a uns bons vinte metros de distância. Parecia um pouco utópico, pois tinha de se passar por baixo da rua por onde circulavam os guardas e todo o movimento interior da Fortaleza. A ideia era chegar à muralha, desviar uma pedra, sair para o fosso e, com a cumplicidade do exterior, tomar um dos navios da Companhia Insulana. O "Lima" ou o "Carvalho Araújo", e seguir para a América do Sul. Era um belo sonho! Havia ali camaradas condenados a vinte anos de prisão... Como não sonhar? Como viver sem ter esperança? Trabalhámos no duro, e quando digo duro não estou a usar uma figura de retórica. O terreno da ilha é vulcânico, e aquele era um arenito negro que nos estragou rapidamente várias "picadeiras" – uma espécie de martelo aguçado de um dos lados e rombo do outro - que nos foram chegando às mãos (o Virgílio é que sabia como). Ainda ali trabalhei uns meses. Só podíamos fazer alguma coisa desde o anoitecer até às nove e meia da noite. Rendíamo-nos a cada quinze ou vinte minutos. Trabalhávamos agachados e isso dava a dimensão do túnel. Conseguimos passar além da parede do edifício, talvez uns dois a três metros. Nessa altura já havia sempre um camarada a agitar uma folha de cartão para nos ventilar e tinha de se trabalhar com muito cuidado. Havia outro camarada de vigia por uma pequena fenda duma janela que dava conta de quando a sentinela se aproximava na sua ronda habitual. Nessa altura parávamos as pancadas. Em Janeiro de 1936, embarquei para Lisboa. Durante anos não soube nada do túnel, só muito recentemente - mil novecentos e oitenta e tal (!) soube pelo Manuel Baridó que tinham conseguido chegar até à muralha, só faltava retirar uma pedra. Creio que esperavam a ocasião propícia, a chegada de um dos barcos. Só que entretanto um dos presos, homem já bastante velho, após ver a entrada do túnel disse ter medo de passar e denunciou tudo. O Manuel disse-me quem foi, e foi isto que me foi contado, não tive mais confirmação. Eu, que era o mais novo de todos, sou agora um dos poucos sobreviventes.
Há ainda a estória de um outro buraco, este um verdadeiro túnel.
Como deixei dito lá mais para trás, também se passava do rés do chão para o primeiro piso, o nosso. A caserna de baixo era composta por três divisões, sendo a de entrada a maior, e era o dormitório. A seguir havia uma pequena divisão assoalhada que servia de sala de jantar. E por fim uma cozinha. Esta tinha várias prateleiras bastante sólidas que eram óptimos degraus para se chegar ao teto, cortar umas tábuas, fazer delas uma tampa. Nós, cá em cima, fizemos o mesmo com o soalho. Assim se estabeleceu a ligação. Foi através desta ligação que eu vim a conhecer o camarada Bento Gonçalves, quando ele chegou de Lisboa. Chegou no barco que cinco dias depois me levou de volta à Liberdade. Ele, infelizmente, seguiu para o Tarrafal de onde só voltou depois de morto.
Enfatizei há pouco o chão assoalhado. É que foi por baixo dele que começámos a abrir um túnel em direcção à muralha, a uns bons vinte metros de distância. Parecia um pouco utópico, pois tinha de se passar por baixo da rua por onde circulavam os guardas e todo o movimento interior da Fortaleza. A ideia era chegar à muralha, desviar uma pedra, sair para o fosso e, com a cumplicidade do exterior, tomar um dos navios da Companhia Insulana. O "Lima" ou o "Carvalho Araújo", e seguir para a América do Sul. Era um belo sonho! Havia ali camaradas condenados a vinte anos de prisão... Como não sonhar? Como viver sem ter esperança? Trabalhámos no duro, e quando digo duro não estou a usar uma figura de retórica. O terreno da ilha é vulcânico, e aquele era um arenito negro que nos estragou rapidamente várias "picadeiras" – uma espécie de martelo aguçado de um dos lados e rombo do outro - que nos foram chegando às mãos (o Virgílio é que sabia como). Ainda ali trabalhei uns meses. Só podíamos fazer alguma coisa desde o anoitecer até às nove e meia da noite. Rendíamo-nos a cada quinze ou vinte minutos. Trabalhávamos agachados e isso dava a dimensão do túnel. Conseguimos passar além da parede do edifício, talvez uns dois a três metros. Nessa altura já havia sempre um camarada a agitar uma folha de cartão para nos ventilar e tinha de se trabalhar com muito cuidado. Havia outro camarada de vigia por uma pequena fenda duma janela que dava conta de quando a sentinela se aproximava na sua ronda habitual. Nessa altura parávamos as pancadas. Em Janeiro de 1936, embarquei para Lisboa. Durante anos não soube nada do túnel, só muito recentemente - mil novecentos e oitenta e tal (!) soube pelo Manuel Baridó que tinham conseguido chegar até à muralha, só faltava retirar uma pedra. Creio que esperavam a ocasião propícia, a chegada de um dos barcos. Só que entretanto um dos presos, homem já bastante velho, após ver a entrada do túnel disse ter medo de passar e denunciou tudo. O Manuel disse-me quem foi, e foi isto que me foi contado, não tive mais confirmação. Eu, que era o mais novo de todos, sou agora um dos poucos sobreviventes.
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