quinta-feira, julho 07, 2005

Pedra Verde


De entre as operações de guerra que filmei para as "Actualidades de Angola", uma que muito me marcou foi a operação Pedra Verde, na zona do Úcua, a norte de Luanda. No Quartel General, eu e outros camaradas jornalistas, recebemos camuflados e juntámos-nos a uma coluna militar a caminho de... (destino desconhecido). Tomei lugar num jeep comandado por um 1º sargento que gentilmente me deu o lugar da frente, ao lado do motorista. Além de "gentil" parvo é que ele não era. Aquele lugar era o mais procurado pelo inimigo emboscado. Mas não me preocupei muito porque ainda íamos pela estrada de Catete e ali não havia grande perigo. Mas mais à frente, os soldados e o próprio sargento começaram, "Olha, lá estão os gajos!". E eu perguntava: Mas quais gajos? "Os turras, não ouve?" E isto repetiu-se várias vezes, até que eu perguntei: Mas o que é que vocês ouvem afinal? - "Os gajos a assobiar. "Olhe, olhe, oiça agora... Fartei-me de rir. Era um "Noitibó, um pássaro que tem um assobio repetitivo, género "piu, píu, píu", que se encontra muito na beira das estradas e que realmente parece um assobio humano. Mas toda a gente que alguma vez andou pelo mato o reconhece, é muito frequente. "Então vocês de onde é que vieram?" –"Viemos do Grafanil". Está bem, mas antes do Grafanil? (o Grafanil era o aquartelamento em Luanda onde ficavam os recém chegados da "Metrópole"). "Viemos de Lamego". Caiu-me a alma aos pés! Eram todos "MAÇARICOS"! Soldados que não só nunca tinham entrado em combate, como nem sequer tinham posto ainda um pé no mato. E eu sabia, por experiência própria, o medo que faz o mato das primeiras vezes que lá se mete o pé.
Sob o comando do Tenente-Coronel Fialho Prego, e tendo como comandante operacioanal o Major Loureiro, a operação integrava também um batalhão de Infantaria e um pelotão de Cavalaria com um carro todo o terreno comandado pelo Alferes Monje, hoje General. E ainda um oficial de referenciação que ia dando a nossa posição de forma a que a Artilharia fosse batendo o terreno à nossa frente, sempre a uma distância "conveniente". Este oficial ia também tomando nota de quantos projécteis passavam sobre nós. Era um ruído arrepiante quando passavam, parecia pano a rasgar! E deveria ter informações da sua bateria sobre o número de disparos efectuados. Sabia assim quantas granadas poderiam eventualmente não ter explodido. Destas, uma secção de sapadores comandada por um sargento iria localiza-las e faze-las explodir. Mas assustador mesmo era o rugido dos "jactos" voando a razar as árvores. Só se ouviam quando já estavam em cima de nós e... já passou! As companhias avançavam paralelamente, mas afastadas umas das outras. Nós seguíamos na do meio. Dormimos a primeira noite a meio do caminho, e só aí abri a ração de combate, e mesmo assim só para comer o queijo, a marmelada e as bolachas. Isto porque durante o dia sofria tanto com a sêde que chegava a beber a água que os soldados me davam generosamente dos seus cantís. Se tivesse comido durante a marcha não aguentaria a sede. Mas chegada a noite parámos para dormir, guardados por sentinelas, apesar de não haver receio de tiros vindos da mata - o clarão indica a posição do atirador, segundo me explicaram. Ao nascer o dia, o comandante de uma outra companhia veio até ao pé de nós trazendo um ordenança e, mal chegaram, um tiro vindo da mata atingiu o ordenança e fracturou o braço ao Capitão. Pouco depois o Capitão entrou em estado de choque e foram ambos evacuados para o hospital em Luanda. Prosseguimos então a marcha com uma Chaimite abrindo a coluna e fazendo "reconhecimento pelo fogo". Mas a metralhadora do carro encravou-se, e foi então um cabo, grande e possante, da guarnição da Chaimite, auto-intitulado 1º cabo Açoriano, quem pegou numa metralhadora ligeira "Lieuse", e chamando um soldado para o municiar arrancou à frente disparando rajadas para um lado e outro da mata. Chegados finalmente à zona de operações, o Alferes, sempre com o seu pingalim, sentou-se à frente do carro TT e nós, fotógrafos e operadores passamos para a frente para filmar a situação. Entretanto tinhamos chegado a um lugar onde a picada estava cortada por uma vala, e o carro não conseguia passar. Nessa altura passou por nós uma secção de morteiros para ir montar um tubo um pouco mais à frente. Aproveitei e fui com eles para filmar aquele aspecto da operação. Nesse preciso momento, desencadeou-se uma fuzilaria incrível. No meio de tudo aquilo ouço um homem a gritar: "Estou ferido, estou ferido". Pela direcção da voz concluí que o homem estaria para lá do carro TT. Pedi aos soldados que estavam ali a fazer fogo para a mata: "Cubram-me que eu vou passar". Corri aquela escassa dezena de metros, passei a vala e abriguei-me atrás do carro. A picada contornava um morro, portanto do nosso lado esquerdo o terreno era mais alto e descia em declive para o lado direito. Como disse, abriguei-me atrás do carro, e vejo estendido no chão a uns três metros à frente, e a descoberto, um soldado ferido na cabeça mas gritando como um possesso. Filmo o homem e procuro acalma-lo. "Ó homem, rola para cá, isso não é nada". Agora veja-se o caricato da situação: Um tipo convenientemente abrigado atrás de um carro de ferro a dizer a um outro, ferido na cabeça. "Ó pá, isso não é nada..." Mas visto friamente é mesmo assim. Com um tiro na cabeça, das duas uma, ou o tipo está morto ou em coma ou, se tem capacidade para gritar, não deve ser muito grave. O tiroteio continuava intenso, mas agora só de cá para lá, pois quem disparara de lá, ou já ia longe ou já tinha sido morto. Nessa altura fiz um grande disparate: Pus a máquina de filmar no chão, e tentei rastejar para puxar o rapaz para trás do carro. Nesse momento um soldado do Pelotão de Cavalaria (os do Carro TT), que estava na parte mais elevada da picada, dá um mergulho e aterra directamente junto do ferido arrastando-o para junto de mim. E eu perdi aquela imagem magnífica, aquela decisiva e corajosa acção daquele soldado. Depois filmei o curativo que um soldado fazia ao outro, e o ferido tinha apenas um furo muito redondinho no lóbulo da orelha esquerda (depois inchou muito e rompeu-se ficando um rasgão feio). Mas o mais fantástico é que ele tinha também um rasgão no sobrolho direito. Era quase inacreditável, o soldado foi atingido por dois tiros na cabeça, não morreu, e nem sequer ficou gravemente ferido. Mas eu não me perdoo por ter largado a máquina!

Li há pouco tempo, por acaso, uma entrevista com um fotógrafo com largo currículo em reportagens de guerra, em que abordava exactamente esta questão, e que já se lhe tinha posto mais do que uma vez. Ir acudir a alguém em perigo perdendo um "boneco" fundamental, ou fechar os olhos da consciência e fazer aquilo que é o seu trabalho. Ele não chegou a conclusão alguma... e eu também não.

Entretanto começou o corte dos troncos para libertar o carro, e aqueles "maçaricos" aglomeravam-sa para ver. Eram um belo alvo para quem estivesse ainda emboscado na mata. Por mais que os oficiais os quisessem dispersos, voltavam sempre a juntar-se. Tiveram sorte! Ao menino e ao borracho...
A partir dali desenvolveu-se o avanço em direcção ao objectivo, uma aldeia no cimo de um pequeno morro. Estava deserta, como se esperava, mas revistado um pequeno "hospital", foram encontrados sinais de feridos daquela manhã. Entretanto, enquanto um grupo revistava umas cubatas, um outro que chegou depois, apercebendo-se do movimento lá dentro, desata aos tiros sobre as cubatas. No meio de gritos e palavrões, saiem de lá os soldados furiosos e milagrosamente incólumes, dado que as paredes das cubatas são de capim. Os sapadores tinham iniciado o seu trabalho e já tinhamos ouvido dois ou três rebentamentos. Um teve lugar ali bem próximo, mesmo atrás de uma cubata, levantando uma coluna de terra e de poeira, e lá de trás aparece um velho sargento, de camisola interior ensanguentada e com uma mão no pescoço. "Olhe meu capitão, olhe o que aquele malandro me fez". E tira a mão do pescoço de onde esguicha, liberto da pressão, um repucho de sangue. Não quero mentir, mas pareceu-me um esguicho aí de uns quinze centímetros ou nais. Fomos ver o que acontecera, e vimos três soldados no chão com estilhaços nas costas, um furriel com as pernas horrivelmente feridas e outro homem a quem faltava a garganta. Horrível de ver! Como teria acontecido aquele horror? Tinha sido o furriel a vê-la. "Olha esta não rebentou..."
Paragem de dois dias.
Pedi para aproveitar o transporte e vim a Luanda, creio que também vinha o Fernando Farinha, ainda um jovem. Tomar um banho reparador, matar a fome! Já estavamos no mato há uma semana, e a viajem dentro daquele carro de ferro, por estradas de terra batida numa velocidade maluca, amontoados uns sobre os outros acompanhando um ferido que entrava em coma mas felizmente não morreu.

Chegados a Luanda (nesse tempo eu vivia na Cela), fui a casa do pintor Neves e Sousa, onde me aboletava, olhei para o espelho da casa de banho e... fechei os olhos. Despi o camuflado e sem me atrever a olhar-me, lá consegui tomar um banho. Divino! Só depois tive coragem de olhar o espelho, ao fazer a barba. O meu amigo Alfredo Barreiros levou-me depois até ao snack da Versailles, disposto a comer um daqueles bifes maravilhosos como eram os do Nicola em Lisboa. E o bife chega, mergulhado num molho que cheirava a distância e um ovo que ainda borbulhava de quente... Deitei-me gulosamente ao bife e ao ovo, pronto a saborear aquela preciosidade... que se me enrolou na boca e não fui capaz de engolir. Tive de contentar-me com o cheiro, uma torrada e um chá. O meu pobre estômago desconfiou da fartura, e acho que fez bem, defendeu-me de uma congestão. Quem se lambeu com o bife foi o Alfredo, que diante do meu olhar de inveja devorava o meu bife e se ria, o malandro. No dia seguinte lá voltei às rações de combate e água dos cantis dos soldados, até chegarmos à gigantesca "Pedra Verde" que dava nome ao sítio. Era do feitio do Pão de Açúcar, não tão grande, mas mesmo asim impressionava, e era verde porque coberta de musgo. A missão era içar a bandeira nacional, por alguns minutos, no cimo da pedra. Começámos a trepar, e iamos descansando nuns socalcos que havia de onde em onde. O meu material, cada vez mais pesado, foi às costas dos soldados até à etapa final. E eles lá cumpriram a missão, que eu filmei, apesar de não tão próximo como desejaria. Os meus quase cinquenta anos tiveram mais força!


Outras imagens da Pedra Verde (cortesia de Manuel e Pedro Mateus)

1 Comments:

Blogger Graza said...

Na Cela?!... Também lá vivi de 1955 a 1959 e até 1962 em Luanda, embora rapazinho. Aquelas terras dão grandes crónicas!

11:53 da tarde  

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