terça-feira, julho 12, 2005

O Círculo de Cinema

O Círculo de Cinema foi um Cineclube criado dentro de uma orientação do Partido Comunista sobre actividades legais. Tendo como directores o José Ernesto de Sousa, o Pousal Domingues, o Eduardo Leite, o Pinto de Carvalho e eu próprio, alugamos uma casa em meu nome na Rua B às Amoreiras. Era uma casa muito grande com uma sala com dimensões suficientes para lá fazermos sessões de cinema de formato amador. Eu morava com a minha mulher e a filha numa parte da residência, e o Círculo ocupava o resto. A renda, 2.200$00, era cara para a época (l947/48), mas pagávamo-la a meias. Tudo acabou no dia 31 de Janeiro de 1948, como adiante se verá. Foi estabelecida desde o princípio, a regra rigidamente seguida de se não exercer lá dentro, a menor actividade política. Não tínhamos um livro, um folheto, um simples papel que fosse passível de intervenção da Censura ou da Polícia. Estávamos puros como açucenas! Então qual era a nossa actividade? Revelar o BOM CINEMA! Escolhíamos de entre os filmes passados no circuito comercial, aqueles que mereciam uma nova visão. Fazia-se uma resenha crítica por pessoas profundamente conhecedoras de Cinema, chamava-se a atenção para determinados aspectos da obra, falava-se do realizador, do argumento, enfim, do filme como integrante de uma dada escola cinematográfica. Imprimíamos um Boletim Mensal com essas notas críticas, incluíamos um questionário pedindo opiniões sobre o filme, juntávamos os bilhetes e mandávamos pelo correio para os nossos 2000 sócios. É verdade! Conseguimos angariar um pouco mais de dois mil sócios. Não havia em Lisboa nenhum cinema com capacidade para tanta gente. O Coliseu, além de ser caríssimo, ficaria vazio com duas mil pessoas. Mais tarde, como "não tinha o prestígio de um Cinema" contratamos então com o Capitólio a realização de duas sessões por mês aos domingos de manhã. Assim, cada filme era exibido duas vezes em semanas consecutivas e os sócios do Círculo eram distribuídos pelas duas sessões. Como curiosidade sempre direi que, se a Polícia fosse ao Capitólio naquelas manhãs de Cinema, não daria o tempo por perdido. Se levasse os espectadores, acabaria com o MUD. (Para quem não seja desse tempo: Movimento de Unidade Democrática). Não posso deixar de lembrar algumas das personalidades da Sociedade Portuguesa que eram sócios e assistiam às sessões matinais e domingueiras do C. de Cinema. Entre outros, cito de memória: Professores Bento de Jesus Caraça e Falcão Trigoso. Mestre Abel Manta. Maestro Lopes Graça. Escritor José Gomes Ferreira, Dois estudantes: João Abel Manta e Mário Soares. Trouxemos de novo à exibição, por exemplo: A Estrada que conduz ao Céu... Roma Cidade Aberta... A Batalha do Rail... La Belle et La Bêtte, e um extraordinário "Western" que tinha passado apenas dois ou três dias no Olímpia (nesse tempo exibia Aventuras) e que, depois de o termos passado no Capitólio, levou a Gerência do Tivoli a chamá-lo ao ecran e re-estreá-lo. Esteve, salvo erro, duas semanas ainda em exibição. No dia 31 de Janeiro de 1948 houve, como habitualmente, uma manifestação junto da estátua de António José de Almeida, reprimida pela polícia, como também era habitual. Pelo chão teriam ficado espalhados exemplares de manifestos "subversivos".
E aqui vamos fazer um flash-back (ou não se tratasse de Cinema). Moravam na Praceta em construção ao fundo da Rua B dois irmãos Moura que a Pide andava a vigiar. Um dos esbirros de vigia terá visto pela janela de uma cave à esquina da Rua, duas pessoas a imprimirem algo num duplicador eléctrico. Era o Pinto de Carvalho e eu no Laboratório de Fotografia a Cores do meu Amigo César de Sá, que gentilmente me facultava a chave e nos permitia que, uma ou duas noites por mês, ali fossemos imprimir o nosso Boletim. Ora o esbirro logo concluiu "alarvemente", como esbirro, que dois tipos junto de uma janela ao nível do passeio a fazer cópias a duplicador, só podia ser coisa de subversivos, e portanto eram os manifestos do 31 de Janeiro. No dia seguinte, 1 de Fevereiro, à tarde, estavam vários associados no Clube a procurar trocar bilhetes de uma para outra sessão quando a Pide assaltou a casa. Eu não estava no momento. Simultaneamente assaltaram o Laboratório do César de Sá e levaram o inocente duplicador "Gestetner". Conforme vim a saber mais tarde, levaram toda a gente que encontraram na casa (até uma amiga da minha mulher que lá estava de visita). Quando já na polícia disse, e provou com cartão, pertencer à Acção Católica, pediram muitas desculpas e livrou-se de ir parar a Caxias. Não levaram a minha mulher porque tínhamos a filha com 22 meses. Entretanto vasculharam a casa toda e num gabinete encontraram em cima de um armário uma porção de folhas "Stencil" cheia de tinta que tínhamos guardado de anteriores Boletins. Contou o Pousal Domingues, que assistiu a tudo, que quando desviaram o armário e encontraram lá "guardados" mais exemplares, foi uma euforia. Ao principio da noite quando cheguei a casa, vi sentado no hall de entrada junto ao telefone uma pessoa desconhecida, o que não estranhei. Mas a minha mulher vem a correr esbaforida da cozinha a dizer, quase a gritar: "Olha! esse senhor é polícia; está à tua espera. Os outros já foram todos presos!" (Ganda mulher!) O polícia aflito: "Óh senhora cale-se. Não tem nada que dizer." Mas o mal estava feito... Pedi ao esbirro que me deixasse ir comer qualquer coisa e aproveitei o lavabo da cozinha para me desfazer de papéis que tinha nos bolsos, nada de importante, mas nomes ou moradas de quem quer que seja não se davam à Pide. Lembrei-me de um dito que ouvira anos antes a um cadastrado no Governo Civil: "À Polícia não se diz nem as horas!" Eu não tinha até ali percebido a razão do assalto e das prisões, só relacionei com o 31 de Janeiro quando ao entrar na António Maria Cardoso, num saguão junto a uma escada de ferro, vi o duplicador do César de Sá e espalhados no chão vários exemplares de manifestos muito rudimentares (como se faziam muito no movimento clandestino e não se pareciam nada com o nosso Boletim, que era uma Obra de Arte. Pois este, que era muito bem impresso, (a máquina era de alta qualidade) tinha até desenhos alusivos ao filme a que se referia, gravados a estilete nos originais pelo então estudante de Belas Artes Lima de Freitas. Claro que a polícia não deu o braço a torcer, e nunca diria que afinal tinha metido o pé numa grande poça. Foi tudo de cambulhada para Caxias sem mais explicações. Não me lembro quantos fomos logo na altura na mesma camioneta, mas durante aquela noite e no dia seguinte, foram entrando mais até sermos mais de vinte. Porquê? Nomes e endereços que os presos no local tinham nos bolsos. Fiz bem em ter ido ao lavabo! Ali foram parar o José Ernesto de Sousa, o João Abel Manta, o Vieira da Silva e o critico musical Humberto d’Àvila. A partir do meio da semana, todos os dias saía um preso, mas continuávamos incomunicáveis e sem visitas. Naquele tempo ainda não havia celas em Caxias, estávamos todos juntos na mesma sala. Por cima da nossa estava presa a Maria Isabel Aboím Inglês e, não quero mentir, mas creio que também a Margarida Tengarrinha. Os presos que eram chamados já não voltavam, e concluíamos que tinham sido libertados. Depois sempre vínhamos a ter confirmação. Até que foi a vez do Humberto d’Ávila, que... voltou à noite. Quisemos logo saber o que se tinha passado mas o Roberto (ou Humberto?), que se vestia muito convencionalmente, chapéu à Banqueiro de abas reviradas (pretas), sobretudo de bom corte e camisa com colarinho de goma, fez questão de se despir cuidadosamente e sempre nos foi avisando que estava muito cansado e que deixaria para o dia seguinte o relato da sua "aventura". Pois a polícia acusava o Cine Clube de exibir filmes comunistas, como Batalha do Rail e Roma Cidade Aberta, e o Roberto foi rebatendo que se tratava de "Obras de Arte" e que até a Orquestra da Emissora Nacional tinha recentemente dado um concerto na Estufa Fria em que tocara uma obra de Prokofief que era um compositor soviético. Aí os polícias atiraram-se ao ar dizendo que isso era mentira, que não seria possível. E pronto, devolveram o Humberto a Caxias enquanto iam investigar o caso. Faço ideia em que trabalhos ficou metida a direcção da orquestra, mas dois dias depois o Humberto foi libertado. Era verdade. Pouco a pouco todos foram libertados ao longo do mês de Fevereiro até que ficamos apenas dois, o João Abel e eu. No dia 28 de Fevereiro foi a minha vez, e o João Abel no dia seguinte. Como dono da casa fui chamado à Polícia logo no dia a seguir. O Chefe de Brigada Gouveia, um tipo sinistro, um homúnculo (já durante os interrogatórios a que fora sujeito aquando da minha prisão em 1934, ele se atirara a mim no meio de uma sessão de pancada, e pendurando-se na gola da minha gabardina gritou: "Estavas quase a dizer, estavas quase a dizer". Talvez estivesse... mas não disse. Mas nesta ocasião só fui chamado para ele me dizer: "Aquela merda não abre mais, ouviu!?" Houve no entanto algo que me deixou perplexo. Como é que a Pide não me relacionou com a minha prisão anterior, com a condenação a dois anos de degredo? Afinal, e para usar a terminologia do pide: "Que raio de merda de polícia era aquela?". Já depois de haver escrito este episódio, lembrei-me de ter ouvido uma conversa do Gouveia (enquanto fazia o compasso de espera a que eram sempre sujeitos os "convidados" naquele antro) com outro esbirro. Dizia ele: "Eu, quando vou fazer uma investigação a uma terra qualquer, para saber quem são os comunistas, não preciso mais do que sentar-me no barbeiro e perguntar onde é que posso arranjar um carpinteiro, um electricista ou um serralheiro que seja bom para me fazer uns trabalhos. Eles logo me indicam o melhor. É esse! Porque aqueles gajos são tão malandros que até são os melhores, só para terem mais influência sobre os outros."