sábado, julho 09, 2005

"O Pianinho"

Chamava-se Jaime Saúde Machado, era serralheiro mecânico na Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata e morava em Alfama, na Rua do Vigário. Conheci-o na Tropa, em Cascais, onde ambos sentámos praça em 1937. Tinha, como quase nós todos afinal, uma grande qualidade: detestava a Tropa. Mas detestava a tal ponto, que cumpria religiosamente os regulamentos. No fundo, a melhor forma de não ter aborrecimentos para além do resultante da sua forçada presença. Tinha imensa piada e ria-se de tal maneira que chegava a ficar com a boca aberta, a meio de uma gargalhada, sem produzir o menor som. Todos nós procurávamos, com o auxílio das famílias, "ajeitar" aos nossos corpos as fardas que nos eram distribuídas, normalmente alguns números acima do indicado. Ao Jaime "Pianinho", que era alto e magro, foi entregue um uniforme, tendo em vista a altura e a correspondente largura, mas ele ficava a nadar dentro da roupa. Não lhe mexeu. Porém, e para preencher o espaço entre o magro pescoço e a largura da gola, servia-se de um grossíssimo lenço de pano cru que, curiosamente, se destinava exactamente a isso. Quase todos nós, no entanto, usávamos uma tira branca mais fina, tipo "volta de padre" que deveria aparecer discretamente acima da gola do "dolman". Mas a "cereja sobre o bolo", era o uniforme no seu conjunto. O dolman, um casaco que descia até às virilhas, era apertado na cintura pelo cinturão da ordem, obrigando a parte abaixo dele a abrir-se em "godés", dando-lhe um aspecto de bailarina clássica em vestido de "mescla". O barrete seguia as pisadas do restante uniforme. Nenhum de nós o usava sem antes lhe dar um tratamento à base de água quente e "massagens", e só depois o enfiava na cabeça, ainda molhado. Só assim tomava forma. Ao sábado, o Pianinho, após vestir o uniforme número 1, o já referido, vinha pavonear-se diante de um grande espelho que havia na caserna e onde podia contemplar-se de corpo inteiro, fazendo uma espécie de passagem de modelos, enquanto se ria a perder e ia comentando a sua performance: "Olhem para isto, nunca se viu nada igual, quando chegar a Lisboa, toda a gente dirá: "Que bela figura de Militar!" E ria-se até à sufocação. Fazia sempre um embrulhinho muito bem feitinho, atado com uma fita colorida e dizia: "Aqui está um lindo embrulho de Pastelaria, mas são... peúgas sujas", e ria-se a perder. Saímos da Tropa ao mesmo tempo, mas não nos perdemos de vista, ambos vivíamos em Alfama separados por uma escassa centena de metros. Ele voltou para o seu lugar na Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata. Eu voltei à Tòbis, ao Cinema, onde ainda fiz dois filmes: A Aldeia da Roupa Branca de Chianca de Garcia, e João Ratão de Jorge Brum do Canto. Mas a Segunda Guerra aproximava-se, o filme negativo(Agfa) era fabricado na Alemanha e começou deixar de ser possível obtê-lo. Fiquei sem trabalho e sem saber por quanto tempo, que foi muito mais do que na altura se pensava. E foi o Pianinho que me deu a ideia: "Porque não vens trabalhar lá para a Fábrica, estão a meter empreiteiros para 10 horas de trabalho, e podes ganhar até vinte cinco escudos por dia". Era um bom ordenado (fora do Cinema, claro) "Mas eu não sou serralheiro, como é que posso ser admitido? "Não faz mal, a prova é fazer uma pequena peça, eu trago-te uma para tu aprenderes a limar e depois nós lá dentro trataremos do assunto. "Vai ter com o Capitão Jonet (que tinha sido nosso Comandante) e pede-lhe uma cunha. Vais ver que serás admitido". Lá fui, e o Capitão prometeu - e cumpriu. Entretanto fui treinar para uma pequena oficina de um amigo onde havia um torno de bancada. O Pianinho trouxe-me uma peça em bruto com as indicações das medidas finais. O meu amigo ensinou-me a posição do corpo e a maneira de empunhar a lima, coisas importantes para parecer um verdadeiro "serralheiro" e não arruinar a peça. Quando me chamaram a exame, deram-me uma peça nova e senhas para levantar ferramentas na Ferramentaria. Por aí ficariam a saber se eu era ou não do ofício. Tinha de saber pedir as ferramentas certas. Mas nisso já o Pianinho me tinha industriado. Fui então ocupar um dos quatro tornos de bancada, com mais três "serralheiros" de ocasião. Começou o exame que iria durar uma hora. A peça era uma cavilha de fixação da coronha das espingardas Mauser, que na altura estavam a ser transformadas em carabinas. A cavilha, vinda em bruto da fundição, tinha de ser limada até ficar no formato e nas medidas certas, cuja tolerância era de poucos "centésimos de milímetro". Para isso tínhamos levantado na Ferramentaria um "escalão", chamado em serralheirês "Péclisse". Os perigos eram dois: não raspar (limar) a peça correctamente e deixa-la abaulada, ou ultrapassar as medidas de tolerância e torná-la mais "magrinha". A certa altura, um operário aproximou-se de mim limpando as mãos a um pedaço de desperdícios e perguntou - "Então como vai isso? "E retirou-se deixando em cima da bancada uma cavilha já acabada...
Já admitido na Fábrica, ia muitas vezes almoçar ao Refeitório que ficava fora da Fábrica, e o Pianinho ia comigo. Um dia o almoço era bacalhau cosido com batatas, muito bem servido mas um pouco caro, por isso resolvemos utilizar um sistema muito comum naquele meio, que era comer no mesmo prato: Não é tão "porco" como pode parecer, embora não colha o meu entusiasmo. E é regra estabelecer-se uma linha imaginária que divide o prato em dois hemisférios, invioláveis pelo companheiro da frente. Só se pode molhar pão já no fim, e só no nosso hemisfério. Eu estava muito mal dos dentes, e quando íamos a meio do almoço, enfia-se-me um bocado de alho dentro do furo do dente. Dei um berro terrível e fiquei perfeitamente imobilizado pela dor. O Pianinho olhou para mim perplexo, viu que eu não ia comer mais, desata a rir-se e, molhando gulosamente o pão no prato, comeu tudo. Pedi uma autorização de saída e fui directamente para o dentista. Se já o tivesse feito mais cedo, teria podido apreciar até ao fim aquele bacalhau a dois, que até estava muito bom. Fiquei grato ao Pianinho e até lhe perdoei a crueldade da risota. Arranquei enfim o dente e fiquei livre... para voltar à próxima bacalhauzada.

1 Comments:

Blogger Rui said...

Boa tarde!
Numa busca casualíssima pelo nome do meu avô materno, fiquei boquiaberto quando me deparei com o seu belíssimo texto.
Sou neto de Jaime Saúde Machado e, em sua memória, agradeço-lhe a magnífica prosa.
Bem haja.
Rui Machado da Silva

12:14 da tarde  

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