terça-feira, julho 12, 2005

No Presídeo da Trafaria

Depois dos interrogatórios na Polícia e da incomunicabilidade nas esquadras (passei várias noites na esquadra de Pedrouços, paredes meias com a casa onde vivi os primeiros oito e mais felizes anos da minha vida), fui levado para a Casa de Reclusão Militar da Trafaria. Esta tem interiormente a estrutura de uma ala penitenciária, uma nave com celas de ambos os lados e uma varanda repetindo as celas do primeiro piso. Fui levado para a cela 43 no primeiro piso, deram-me um número, 4763, e dois companheiros. O Casimiro Júlio Ferreira, "funileiro à porta", nascido em Alfama como eu. Veio a morrer no Tarrafal. O outro era o Manuel Gomes Cascarejo, de Ovar, fragateiro do Tejo e com quem vim a partilhar o cativeiro nos Açores. Eram ambos homens feitos de 25 e 28 anos respectivamente e completamente analfabetos. Como não eram permitidos jornais mas os livros eram autorizados, pedi à minha Mãe que me mandasse alguns. Mandou-me um romance de cordel daqueles que se distribuíam em fascículos e que alguém teria mandado encadernar na Oficina do meu Pai e nunca lá fora buscar. Eram sete volumes de "O Punhal de Ouro", ou "Os Crimes duma Associação Secreta" de Guy de Monpassant, ou de "Ponson du Terraille". Já não me lembro, mas para o caso tanto faz, porque o que eu quero relatar é o efeito daquela leitura em duas criaturas que nunca tinham lido nada. Tinham-nos sido distribuídas duas enxergas e três mantas. Com as enxergas no chão, uma manta para as cobrir, o frio de Janeiro numa cela Fria da Prisão, passávamos a vida deitados e eu ficava no meio, na junta dos dois "colchões" que colmatei com a minha gabardina feita um rolo. Assim eu lia para os dois, e tinha constantemente de explicar o significado de palavras muito usadas naquele tempo e naquele género de "literatura". Palavras como "mancebo", "gentilhomem", "semblante", etc. davam-lhes vontade de rir. Lembro-me mesmo de um dia estar o Cascarejo a contar uma discussão que tivera com o Abílio Cortàfolha (encarregado de Estiva), e... "O gajo chateou-me e amandei-lhe um murro no samblante!" Aquele romance era do mais faca e alguidar que se possa ler. Eram crimes e mais crimes feitos principalmente por um Mancebo, e o Cascarejo indignava-se e chegava a pegar no chinelo de trança que tinha no chão ao lado da enxerga e ameaçar-me: "É pá, acaba lá com isso que eu dou cabo de ti!". Eu ria-me e dizia "acabou não leio mais para ti que és um bruto". E ele lá voltava à calma, pedia desculpa e eu continuava a ler até... ao próximo assassínio e nova fúria daquela criança de 90 quilos. Na Trafaria passava-se mal principalmente com a alimentação e falta de higiene. Mas não vou falar em coisas tristes. Bem basta a prisão!