terça-feira, julho 12, 2005

No Palácio de Queluz

Filmavamos o "Bocage" (1936), de Leitão de Barros, e eram os jardins do Palácio o local escolhido. Estavamos a gastar muito filme, repetindo cada plano imensas vezes até conseguir dois "takes" julgados bons. O produtor Costa Carvalho, entre muitas bizarrias, tinha a película guardada consigo, quase com certeza em más condições de ambiente. Nesse tempo não havia ainda ar condicionado em Lisboa. Uma das minhas funções como segundo assistente de imagem, leia-se "pau-para-toda-a-colher", era manter sempre a câmara abastecida de filme. E esta tinha capacidade para chassis de 300 metro que se gastavam rapidamente. Para se avaliar o grau de avareza do senhor, e de inteligência também, basta um pormenor. Como havia câmaras mais ligeiras que tinham chassis de 120 metros, quando se lhe pedia filme, procurava dar destas bobines, o que provocava um desperdício de 20 metros por bobine. Num certo dia, em que como quase sempre me cansei de pedir filme, quando vi que nos arriscavamos a ter de parar as filmagens, avisei o Leitão de Barros (o realizador) do que se passava. Este chamou o Produtor e deu-lhe uma descompostura. Ele desculpou-se comigo dizendo que nunca lhe tinha pedido nada, colacando-me o rótulo de mentiroso, e voltou as costas chamando-me para ir com ele. Chegados ao Palácio, mandou-me entrar para uma sala e fechou-me a porta nas costas. Era uma espécie de escritório improvisado da Produção. Mas havia outra porta que dava para um grande salão que pouco tempo antes tinha sido parcialmente atingido por um incêndio que devastara o Palácio. O Salão tinha várias portas muito altas encimadas por largas "bandeiras" de vidro que tinham rebentado com o calor, deixando o espaço vazio. Por seu lado as portas tinham muitos relevos, e eu tinha vinte anos... Subir por elas acima, passar pelo espaço das bandeiras e descer do outro lado, levou menos tempo do que a contar. Achei-me então num grande pátio gradeado até acima, mas com portões mais baixos que escalei e desci para um grande Largo a tempo de ainda ver o carro do Costa Carvalho em grande velocidade a caminho de Lisboa. Não sei localizar esse Largo, nunca mais por lá passei, e já vão quase setenta anos. Mas ficava ao lado do palácio, visto que encontrei uma porta por onde entrei e me fui juntar à equipa. Contei ao Leitão de Barros e a todos os presentes, e foi uma gargalhada geral. Até que chegou o personagem, realmente em tempo record, muito enfiado, trazendo latas de 120 metros em vez de trezentos, julgando que economizava. E logo o espírito mordaz do Leitão de Barros se manifestou em todo o seu esplendor. "Então ó Costa Carvalho, o senhor com essa idade anda a sequestrar rapazinhos? Isso não lhe fica bem!" E lá foi desfiando mais umas alfinetadas para gáudio de todos nós. O homem ficou tão atrapalhado... Fechou a cara e, mastigando o charuto, num tique que lhe era muito peculiar, virou as costas e desapareceu. Peguei nas latas e fui carregar os magazins de trezentos metros com rolos de 120. E foi essa a única vez em quarenta e seis anos de profissão que senti o sádico prazer de desperdiçar filme.