nós o osso e o cão
Creio já ter contado que no Presídio de Angra do Heroímo havia um edifício que comportava quatro casernas em dois pisos, e como nós tinhamos conseguido estabelecer comunicação clandestina entre três delas. Mas ao lado existia um outro conjunto de duas casernas em dois pisos. Não podendo comunicar directamente, recorremos a outros meios mais imaginativos. Num osso de boi que encontrámos no terraço, e que tinha um interior espaçoso, tapámos uma das extremidades com gêsso, metiamos lá dentro as mensagens, colmatavamos a abertura com terra amassada e deixavamos depois o "correio" num sítio discreto durante o recreio onde outros camaradas o apanhavam, levavam, liam e respondiam, deixando o osso no mesmo local. Tudo isto levava pelo menos três ou quatro dias. Eram os nossos "mails" da altura. Um dia fatídico para a nossa tradicional amizade, um cão que apareceu por lá, foi roer aquele osso sem carne para os pés de um guarda republicano, e aí acabou o nosso "correio". Porém foi por pouco tempo. Apanhámos uma pedra coberta de líquenes e o Diniz que era canteiro de profissão, teve artes de lhe fazer um furo de suficiênte diâmetro para recolher as nossas mensagens. Assim foi reposta a "ilegalidade" anterior. Mas havia ainda necessidade de comunicar com o exterior, o que, segundo julgo, era feito através de um tal sargento Videira(?), também preso, mas numa casa afastada, e a quem tinha sido concedida liberdade de circulação na Fortaleza. Mais longe das casernas existia um balneário antigo, em pedra mármore, mal tratado e com os vidros das janelas partidos, por onde entrava um vento frio para juntar ao frio da água. Este balneário situava-se no alto da falésia, frente ao Mar. Nas casernas tomavamos banho de "púcaro" que despejavamos na cabeça uns dos outros. Por isso insistimos, e conseguimos, que nos levassem ao balneário, em pequenos grupos acompanhados por dois guardas. Um deles ficava do lado de fora da porta e outro passeava-se frente às janelas. Nós faziamos sempre uma grande brincadeira, para encobrir a actividade do Virgílio Ferreira, que levantava o ralo do chuveiro e de lá tirava um tubo de vidro de Aspirina, e colocava outro. Este "correio" era irregular mas funcionava. Aliás, nós não tinhamos pressa... infelizmente. Estes pequenos truques, além de facilitarem a comunicação entre nós, davam a alegria de podermos troçar com os guardas. A propósito disso, lembrei-me agora de uma brincadeira, sem utilidade prática, a não ser a de ridicularisar os carcereiros. Durante o recreio, estava um guarda escondido num guarita de um dos torreões, para nos vigiar e descobrir como é que nós comunicavamos. Fomos para outro torreão (onde, 65 anos depois, voltei fiz uma fotografia). e reunimo-nos com um ar conspirativo e um de nós, "encoberto" pelos outros, baixava-se. Voltamos para a caserna até um pouco mais depressa que o costume e acercamo-nos das janelas a ponto de vermos um grupo de guardas subir a escada, chegar ao torreão, e um deles, certamente o espião heroi se curvava, e apanhava qualquer coisa meio escondida sob os bancos de pedra. Enquanto aquela meia dúzia de exultantes cabeças se unem, curvadas, o "herói" no meio do grupo deve estar prestes a mostrar o seu troféu que, pensará ele, lhe trará um louvor. De súbito o círculo de curiosos desfaz-se de um salto. Enquanto uns se riem a perder, o espião frustrado deve ter um ar furioso perante o "troféu" que tem na mão, e que a distância não nos permitiu apreciar devidamente. Era uma caixa de fósforos de onde surgiu repentinamente, impulsionado por um elástico, um vigoroso e colorido pénis, êsse sim, digno de louvor. Para nós, deu-nos para rir por largos dias.
........................ano 2000..................................1934 (preso)
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