sábado, agosto 20, 2005

no Luiana

Farei agora o relato de uma operação militar que inesperadamente se nos deparou. Tratava-se do hastear da Bandeira Nacional no edifício abandonado da Administração do Luiana que ficava exactamente na ponta sueste de Angola e estava sob a acção da guerrilha do Savimbi. Tivéramos conhecimento dessa acção em Menongue – Serpa Pinto - pelo Governador da Província, Comandante Sousa Machado, uma pessoa de uma cultura muito acima da que se costumava encontrar por aqueles "fins de Mundo". A nosso pedido acedeu a que partíssemos para o Rivungo, na margem direita do Rio Cuando. Todavia, não permitiu que fizéssemos a viagem no nosso Land-Rover, aliás equipado com tudo o que nos tinha permitido até ali viajar com o conforto e a segurança possíveis. Depois de nos terem fornecido camuflados, partimos no avião do Governo Distrital rumo ao Rivungo. Mas no caminho caiu uma chuva de tal intensidade que tirou quase por completo a visibilidade. O recurso foi voltar as costas à chuva e procurar o campo de aterragem que servia uma Coutada de Caça. A fuga foi dramática; a chuva perseguia-nos com tal velocidade que nos alcançou pouco antes de aterrar. Felizmente o piloto já tinha avistado a pista e posto o avião no enfiamento. Mesmo assim aterrámos pelo tacto, e chegámos mesmo até ao fim da pista. De súbito, como era frequente, a chuva parou, ou passara por cima de nós e continuara na sua rota. Então demos conta de que tínhamos parado para lá do fim da pista e a escassos metros da mata. Com a urgência que se impunha, não convinha que o piso amolecesse mais, deu-se a volta ao avião, e descolamos rumo ao Rivundo. Várias surpresas me esperavam ali, a primeira das quais, foi o encontro com o Administrador Mota Torres que já conhecia de Luanda, das tertúlias em casa do Pintor Neves e Sousa. Mais tarde voltámos a encontrar-nos algures no Norte de Angola, numa das minhas muitas deambulações em busca de imagens. Era um homem muito terra-a–terra, não lhe ficando nunca uma palavra engasgada na garganta, o que é bem de ver, já lhe tinha custado alguns dissabores. Outra boa surpresa, foi encontrar uma secção de Fuzileiros que acompanhara durante uma Operação no Rio Zaire, mas esta sem nada de assinalável. Mas nada é perfeito nesta vida, e não podia faltar a mosca na sopa. Os Pides residentes no Rivungo, pequena povoação localizada na margem direita do Rio Cuando, fronteira natural com a Zâmbia, agora deserta de habitantes, onde existia uma muito vandalizada Missão Católica, julgo que feminina. Havia também um Posto da P S P, entregue a um solitário Chefe, e a Administração que tinha jurisdição sobre uma área pouco povoada. Era zona de acção da Unita. Estávamos a cerca de 180 quilómetros do Luiana, na ponta Sueste de Angola, que iria ser o nosso objectivo. No dia seguinte chegaram uns jeeps vindos de N’riquinha, com o Capitão Oliveira Martins, um furriel e alguns soldados. Vinham juntar-se aos Fuzileiros para a Operação já referida. Entretanto, aterrou um bendito avião militar trazendo abastecimentos. Com eles vinha uma encomenda para o Administrador, e que constava de... Camarão grande, congelado. Mas como nem tudo são rosas e camarão, trazia também um novo pide que vinha substituir um dos residentes e assumir a Chefia. A convite de Mota Torres, "o dono do camarão", fomos ajudá-lo a acabar com ele e com algumas cervejas geladas. Presentes estavam o Capitão, o Chefe da PSP, o Sargento dos Fuzileiros, o furriel dos Caçadores, nós os três civis e mais um comerciante da
Região cuja casa tinha sido saqueada pela Unita e que iria ser o nosso guia. Mas não se pôde evitar a mosca na sopa, que até eram duas, personificadas pelos dois pides, o que já cá estava e o que veio chefiar. Durante a confraternização que decorreu muito bem, como aliás era esperado por gente que vivia em clima de guerra a oito mil quilómetros de casa. Em determinado e infeliz momento, não sei a que despropósito, o tal novo chefe da pide, enquanto descascava um camarão diz em tom displicente: "Eu, se mandasse, já tinha acabado com o terrorismo há muito tempo". Mota Torres, sem levantar os olhos do camarão que descascava, perguntou-lhe: "Que idade é que você tem?" - "Vinte e seis anos". E ele, continuando às voltas com o camarão, "Ora Porra!" Ninguém se riu, (quem é que se ri de um pide?), e o assunto morreu ali. Chegou o dia da partida para o Luiana. Aqui, falha-me qualquer coisa, sempre se passaram trinta e sete anos, no tempo e por cima de mim. Creio que saímos com três jeeps, portanto nunca poderiam ir mais de 18 militares. Mas nós, jornalistas éramos três, pelo que se sacrificou o Emílio Felipe redactor, pelos repórteres de Cinema e fotografia. Nós depois, faríamos o relato ao Emílio. Choveu durante o caminho todo e para completar o programa, um dos carros empanou, e não seria possível seguirmos todos em dois carros. Em vista disso, o Capitão Oliveira Martins, mandou um jeep com o condutor e mais 2 ou 3 homens como segurança de volta ao Rivungo, trazendo um jeep e rebocando o outro. Ali ficámos por longo tempo, debaixo de uma chuva persistente, mas não à moda de África. Abrigávamo-nos com os ponchos impermeáveis, e nem pensar em fazer uma confortável fogueira. Lá para as tantas apareceram os mecânicos com dois jeeps, um para nós e outro para rebocar o empanado. Reconstituiu-se a coluna e seguimos viagem. De manhã chegámos ao Luiana onde a residência do Administrador, era quase um Palácio, obedecendo aliás, a uma directiva do Governo em relação à qualidade das residências de fronteira. O mesmo já eu constatara em Noqui, na margem esquerda do Rio Zaire, fronteira com o Congo Belga. Foi, pois, no ponto mais alto do "Palácio", que foi hasteada a Bandeira Nacional, com todas as honras militares. Tudo foi detalhadamente passado a fotografia e a cinema, para isso ali estávamos. O Raul Moreira fotografou e eu filmei tudo em pormenor. Aliás a cerimonia foi cumprida com toda a dignidade, mas foi muito breve. Feito isto, para a minha ingénua surpresa, arriaram a Bandeira, dobraram-na segundo o ritual e... vamos embora. Perante o meu espanto, diz-me o Capitão: "Então você julga que se a tivéssemos deixado estaria lá mais de meia hora? Nós a virarmos costas, e os gajos, que devem ter assistido a toda a cerimónia, viriam buscá-la como um trofeu". Fiquei com a cara que se calcula. Era altura de regressar. E aqui mais um desvio, ou antes, retrocesso. Mas não há nada a fazer, tenho uma mente indisciplinada. Bem sei que poderia voltar atrás e, com a facilidade que o computador proporciona, poderia muito bem ir meter esta prosa no lugar certo. Mas fi-lo tantas vezes, que já não há paciência. Por isso aqui vai:
Quando partimos de Serpa Pinto, o nosso jeep foi levado pelos caçadores guias para a Coutada onde estivéramos aboletados, e ficara combinado que entraríamos em contacto via rádio quando fosse necessário. Acertaram-se as horas de escuta, e tudo ficou OK. Na véspera da partida para Luiana, através do rádio da Administração, chamámos o rádio emissor/receptor do nosso jeep e informámos os amigos da Coutada, de que estaríamos dentro de três(?) dias, desde a hora X até à hora Y, numa grande sanzala cujas coordenadas nos tinham sido dadas pelo Comerciante. Aliás a sua casa saqueada era um ponto de referência para os caçadores guias que conheciam muito bem toda a região, e nos trariam o carro vindo a corta-mato desde a Coutada. Não sei se serei capaz de dar a ideia da dimensão desta operação em termos de quilómetros. Mas imaginemos um triângulo com um dos vértices no Porto, outro na fronteira espanhola e outro em Leiria, sem povoações, sem caminhos, a não ser os que os que o rodado do carro vai fazendo. Voltando trás, após a cerimónia do hastear da Bandeira, iniciamos a primeira parte do regresso, até à sanzala já referida. Estava deserta, mas as galinhas continuavam debicando pelo chão do terreiro que estava arrumado e limpo. Devia ter sido abandonada à nossa aproximação, porque a população não sabia nunca o que fazer. Vinha a tropa Portuguesa e acusava-os de ser da Unita, vinha esta e punia-os por apoiarem os portugueses... Por isso era melhor a ausência do corpo do que a presença de espírito. Esperámos pelo jeep que só chegaria no dia seguinte, conforme o combinado. Dormimos portanto ali, mas era preciso montar sentinelas, duas por quarto, e para que estes fossem de apenas uma hora, em vez das duas habituais. Todos, a começar no Capitão e a acabar nos jornalistas fizemos a nossa obrigação. Se bem me lembro, esperávamos os nossos amigos depois da uma da tarde, visto que eles teriam de fazer mais de trezentos quilómetros desde a Coutada, e assim poderiam percorrê-los de dia. No dia seguinte, pouco depois da primeira hora, vimos, muito ao longe na planície, o nosso carro a aproximar-se. Concluímos então a viagem até ao Rivungo. Era suposto regressar a Serpa Pinto e relatar ao Governador Sousa Machado o decorrer da nossa missão. Mas estava programada uma missão de patrulha no Rio Cuando que, como já disse, faz fronteira com a Zâmbia. Essa operação seria feita a bordo de uma daquelas barcaças que as tropas aliadas usaram para desembarcar nas praias da Normandia, baixando painel da proa, mas que naquela tinha sido soldado quando a Marinha a trouxera para ali, por terra, cortada em secções transportáveis. Claro que não desperdiçamos a ocasião de fazer mais uma reportagem. Como não se podia deixar a vila desprotegida, e como a nossa missão seria apenas de patrulha e observação, optou o Capitão por fazer embarcar apenas o sargento, o furriel e cinco ou seis fuzileiros e os dois repórteres. Subimos o rio para fiscalizar algumas ilhas do lado de cá da Fronteira. Havia já algum tempo que navegávamos quando se notou movimento em terra. Encostámos à margem, e os Fuzileiros correram na direcção onde haviam avistado movimento. Quem lá estivera fugira, mas os militares perseguiram-nos com tal velocidade, que nem eu nem o fotógrafo, nem o Capitão os conseguimos acompanhar. Subitamente o Capitão fica muito preocupado e aponta para o chão. E que vejo eu? Rodado de carros. Mas carro numa ilha? Não. É que estávamos em terra firme, tínhamos entrado inadvertidamente na Zâmbia. Coisa gravíssima porque, para além do que nos viesse a acontecer - e boa coisa mão seria - haveria um grave conflito Internacional. Ali esperámos pelos outros, que continuavam a fazer fogo que continuou por mais algum tempo até que os homens regressaram. Traziam cartões da Unita, dois, salvo erro, e uns amuletos. Mas, mais atrás, dois homens transportavam o corpo de um camarada.
Tinha sido atingido na cabeça, e não sobreviveu. Foi um duro golpe para todos nós. Era preciso regressar a bordo o mais rapidamente possível. Teriamos de percorrer duas ou três centenas de metros, com o corpo do Fuzileiro às costas. Este rapaz, conhecido entre os camaradas por "Sabóia", nome da sua terra natal, era um dos Fuzos que eu conhecera meses antes no Zaire. Só restavam agora quatro fuzileiros, visto que dois tinham ficado a bordo por segurança. Então tomou-se única solução possível.Um dos civis tinha de auxiliar no transporte do corpo. O Raul Moreira estava naturalmente excluído, tinha uma problema numa perna e coxeava muito. Coube-me a mim e a um dos militares essa difícil e dolorosa missão, deixando livre outro homem para fazer a nossa protecção até alcançar a barcaça. Esta protecção, foi assegurada apenas por cinco armas: O Capitão, o sargento, o furriel e dois fuzileiros. Não vou descrever a consternação a bordo e depois no Rivungo. No dia seguinte veio um avião com um caixão de chumbo e levou o pobre Sabóia. O tempo que o CITA, Centro de Informação e Turismo, me concedera, esgotou –se, e tive de regressar a Luanda deixando os meus companheiros continuarem os trabalhos sozinhos. A final, tínhamos vindo ao Rivungo para cobrir uma cerimónia militar, afastada quase duzentos quilómetros da base, numa fronteira hostil, tendo pernoitado numa sanzala abandonada, e nada de grave tinha acontecido. Agora, numa breve patrulha, mesmo à porta de casa, e surgiu a tragédia que roubou a vida a um jovem. "Malhas que o Destino tece"...