segunda-feira, julho 25, 2005

a Sª de Fátima

Este título pode parecer estranho, mas virá a justificar-se mais à frente. Filmávamos o VENDAVAL MARAVILHOSO, com a Amália, o Barreto Poeira e um actor brasileiro, amador, chamado Paulo Maurício que interpretava o papel de Castro Alves. O filme era sobre o poeta brasileiro do Século 19. Os trabalhos não estavam a correr da melhor forma, por razões que seria agora fastidioso relatar, e o ambiente era de cortar à faca. Fomos fazer os exteriores de uma zona de floresta para o Jardim Botânico da Faculdade de Ciências, e a cena era aquela em que o Castro Alves dá um tiro no pé, e disso vem a morrer, se não estou enganado. Era pois uma cena altamente dramática. Faziamos noite americana, o que quer dizer que filmávamos de dia com efeito de noite, colocando em frente da objectiva um filtro vermelho, um filtro polarisador, e ainda se filmava em subexposição. Esta explicação é necessária para que se perceba que se via muito mal durante a filmagem. Por isso eu, o operador, andava todo o dia com uns óculos de soldador que só tirava quando metia a cabeça debaixo do pano preto. Fez-se pois um plano muito dramático, com o Poeta a saír coxeando do meio do arvoredo. Por efeito dos filtros, as folhas verdes das árvores ficam muito escuras e o céu azul fica negro. Acabadas as filmagens do dia, regressamos ao Estúdio. Só na tarde do dia seguinte fomos ver em projecção o trabalho da véspera. E quando o Poeta sai do meio daquela escuridão, o que é que vemos? A uma certa distância, por detrás do personagem, e num nível um pouco mais elevado, entre as árvores, uma mulher vestida de branco embalando nos braços uma criança. Ficámos todos gelados – principalmente eu – que devia ter visto e não vi. Ouve-se um berro: "Ó senhor João Silva (o Leitão de Barros, que sempre me tratou por tu desde os meus tempos de claquete-boy no Bocage, quando se zangava tratava-me por Senhor) o que vem a ser isto? Como foi isto possível?" - Não sei responder, disse eu, mas naquele sítio só se for a "Srª de Fátima". Os meus camaradas ainda tentaram avançar com um "nós também não vimos", mas eu atalhei logo que aquilo era só comigo. Eu tinha com o Leitão de Barros uma relação de parada e resposta, nunca me deixei intimidar por ele e procurei sempre não dar o flanco. Nunca tinha sido censurado no meu trabalho, aquele era o terceiro filme que fazia com ele e custava-me muito ser apanhado numa falha tão grande. Certo é que a coisa estava ali e não havia voltas a dar-lhe. Mas eu continuava a não acreditar na hipótese da Srª de Fátima. Num intervalo de trabalho, fui ao Laboratório e pedi o negativo daquele plano. Depois, no Laboratório fotográfico, fiz uma ampliação 3ox4o e vi que no meio da folhagem havia um pedaço do céu que, se fosse azul deveria ficar negro por efeito dos filtros, estava branco porque era uma nuvem, que os filtros ainda tornavam mais branca. O caprichoso desenho das ramagens, mais o efeito do vento sobre elas, criavam a ilusão de uma pessoa sentada embalando uma criança. Fui ao "plateau" mostrar a foto ao Realizador, provando que afinal não havia erro meu, pois na paisagem natural que nós observávamos a olho nu, não havia lugar a ilusão. Acresce que o local onde filmáramos era o ponto mais alto do Jardim e o terreno começava a descer para o lado do Parque Mayer. A tal senhora a embalar só poderia estar no Céu, daí eu ter pensado na Srª de Fátima. Mas desta estava ela inocente... como aliás eu também. Mas o efeito era tão real que o "plano" não serviu, e teve de se repetir.