sexta-feira, agosto 19, 2005

O elefante repartido

O jornalista Emílio Filipe, o fotógrafo Raul Moreira e eu andámos cerca de dois meses num Land-Rover pela Região do Cuando Cubango colhendo material sobre variados aspectos daquela zona; etnográficos, paisagísticos, cinegéticos, etc.. Muitas vezes dormíamos mesmo no carro ou montávamos tenda, Fomos mesmo integrados numa operação militar à Região do Luíana (disso falarei mais tarde). Na ocasião estávamos aboletados numa Coutada de caça e já tínhamos feito vários contactos com uma tríbu de "Buchímanes" de que falarei noutra ocasião. Depois de termos conseguido filmar em boas condições antílopes, avestruzes, búfalos e mesmo um rinoceronte, não tínhamos visto elefantes em condições filmáveis. Entretanto chegaram dois turistas americanos vindos directamente de avião da África do Sul, (nem passavam por Luanda). Também procuravam elefantes dos quais só queriam levar uma pata, para cada um e uns bocados de pele para fazer carteiras. Também tiveram dificuldades. Mesmo uma vez em que estivemos mais perto, como junto deles estava um rinoceronte – que ouve muito melhor que o elefante – este fugiu e os elefantes seguiram-lhes o exemplo. Numa madrugada em que não seguimos com os americanos fomos dar com uma "libata" de "ganguelas" - povo daquela região – que estava a fabricar uma espécie de cerveja de "massambala" uma gramínia muito vulgar. É curioso que esta "cerveja" chama-se "makau" (cheirava mesmo a cerveja e foi isso que nos chamou a atenção) Pedimos ao Sóba, que ali é também o feiticeiro, que nos deixasse filmar aquela operação, ao que ele não se opôs. Posto isto pedimos que fizesse um feitiço junto do "Pau Votivo" pois eles não têm imagens, bonecos ou fetiches. Diz ele: "vou fazer feitiço prá aparecer "arefante". Juntou algumas mulheres em volta do "pau votivo", pintou-lhes as caras com cinza e uma pasta branca, fez muitos gestos "cabalísticos", fez umas rezas e foi tudo; aliás bastante breve. Era ainda bastante cedo e continuamos na nossa busca, e já da parte da tarde fomos encontrar os caçadores americanos e pouco depois, finalmente, ,um elefante que eles mataram. Ao regressar à Coutada passamos pela "libata" e dissemos ao Soba que na madrugada seguinte passaríamos por ali para os levar até junto do elefante para eles o esquartejar e dividir. Aqui um à parte; Como deve ter subido o prestígio daquele "kimbanda" junto do seu povo! Fazer o feitiço e, no mesmo dia aparecer elefante, é obra! Pelo menos o alarido das mulheres dava-lhe nota alta., Assim, no dia seguinte carregamos o jeep com uma multidão de homens com catanas e facas e mulheres com bacias e alguidares. E lá chegamos ao elefante. Enquanto os homens abriam o paquiderme (tudo isto nós, o Raul e eu íamos fotografando e filmando enquanto o Emílio tirava notas). As mulheres faziam um estendal para posteriormente porem a carne a secar. Omito os pormenores do desmontar do bicho que era bastante repugnante à vista e ao olfato. Quero realçar a forma como foi feita a distribuição da carne pelas mulheres; O Sóba separava uns pedaços de carne de diferentes partes do elefante, chamava uma mulher e entregava-lhe a porção que entendia; certamente segundo o número de pessoas que ela teria a seu cargo e nenhuma disse: "Aquela teve mais do que eu". ( havia de ser cá!!!) Disciplinadamente ia estender no varal a parte que lhe coubera.. Entretanto alguns homens punham às costas porções de carne a afastavam-se até desaparecerem da nossa vista. Perguntamos para onde iam e foi-nos dito que iam levar a carne a outros povos vizinhos que noutras ocasiões tinham feito o mesmo com eles. Mas o mais estranho veio a seguir. Com o maior espanto vejo aproximarem-se dois buchimanes com dois paus às costas que sem dizerem nada se metem também dentro do elefante e vá de cortar carne. Sabendo como era grande o ódio entre os Bantus e os Mucancalas (o mesmo que buchimane) imaginamos logo ali um massacre. Nada disso; os homens enfiaram a carne que puderam nos paus que traziam, puseram-nos atravessados nos ombros e, sem dizer água vai, lá se foram por ponde vieram. A explicação que nos foi dada pelo próprio Sóba foi que se toda a gente tem fome, quando se apanha um elefante ou outro animal grande toda a gente tem direito a levar aquilo que for capaz de carregar. Mas não sejamos românticos e não vejamos nisto um simples acto de solidariedade. O instinto da sobrevivência, fala aqui muito alto: "hoje por ti amanhã por mim", mas não deixemos de pensar quão diferentemente se passam as coisas neste nosso mundo civilizado. Ou mesmo naquela mesma África mas mais para o Norte, Luanda, Uíje, Malange, etc onde o contacto dos povos nativos com os europeus é mais estreito e antigo. Já se sabe que mais de pressa se absorvem os maus exemplos do que os bons. De qualquer forma, o que me deixou marca foi realmente o episódio solidário e humano que presenciei do "ELEFANTE REPARTIDO".