sábado, novembro 05, 2005

o caricaturista e o pato bravo

Anos 40. Feira Popular de Lisboa no Parque José Maria Eugénio. Hoje Parque da Gulbenkian. Talvez não haja –não pode haver ninguém desse tempo – nem eu, a rondar os noventa, me lembro. Sei por ouvir contar, mas é fácil confirmar no Museu da Cidade. No sítio daquele Parque Muralhado existia uma quinta do proprietário que lhe deu o nome. Uma parte da quinta ficava fora das portas de Lisboa, e a outra do lado de dentro. Era a propriedade atravessada por um riacho que corria de fora para dentro. Nesse tempo, e disto ainda eu me lembro, certos produtos pagavam direitos para entrar na cidade, entre eles carne, água-ardente, etc.Fácil era por na água uns barris que, durante a noite, adormeciam no exterior e acordavam no interior da quinta. Daí o nascer da Muralha e do palacete. Feito o desvio, entremos no assunto. Na década referida costumava eu frequentar assiduamente a Feira, e uma noite assisti a um caso que muito me penalizou. Costumava andar de Restaurante em Restaurante, de Bar em Bar, um homem com aspecto de muito pobre, sobraçando alguns cadernos. Acercava-se dos clientes e perguntava com uma voz difícil de asmático ou cardíaco: "desejais a vossa caricatura?" Poucas vezes vi alguém aceder ao doloroso pedido. Mas uma noite, numa das esplanadas de restaurante, uma longa e ruidosa mesa encabeçada por um ainda mais ruidoso homem forte e de ar próspero, tipo "pato bravo" que não escondia, antes fazia questão de que se notasse a sua qualidade de anfitrião, pagador. Aproximou-se o caricaturista com a pergunta sacramental. E o "pato.bravo" com ar importante e magnânimo: "faça-me lá a caricatura". E continuou a comer, a beber e a falar com a boca cheia, também, de calinadas. Acabado o trabalho, o artista entregou a obra ao cliente. Este olha atentamente o papel solta uma gargalha estrondosa e exclama: "É pá! isto vai já pr’ró Porto. Há lá um gajo meu amigo qu’é tal e qual esta cara." Não sei o que teria sentido o pobre caricaturista. Provavelmente, já estaria calejado com brutalidades semelhantes, o seu sentido de dignidade estaria adormecido por elas. E a necessidade de sobreviver, sobrepunha-se a tudo. Ainda hoje me sinto constrangido com esta recordação.