os bons velhotes do bom hotel
Já escrevi noutro local sobre a "qualidade" dos Hotéis do mato e da odisseia de quem por eles passava. Mas nem tudo na Terra são horrores, e aqui vai um bom exemplo. Pela enésima vez tomei, no Lobito, o comboio que me levaria ao Alto Catumbela a fim de fazer um Documentário sobre a Celulose. Aí se localizava a maior fábrica de papel de Angola. A viagem iniciou-se por volta das seis horas da tarde e,para mim macabou uzentos quilómetros adiante já depois da meia noite. Naquela vila, a pesar da importância da sua indústria, a Estação de Caminhos de Ferro era muito pequena e o cais mais curto do que o comprimento do comboio. Chegado ali apressei-me a retirar o material, vários volumes com mais de quarenta quilos de peso. A minha carruagem era a última,e tive de descer tudo para o chão às escuras e debaixo de uma chuva torrencial. O combóio partiu imediatamente e eu deitei a correr, tanto quanto o terreno e escuridão mo permitiam, em direcção à plataforma antes que já não houvesse lá ninguém. Tive sorte, ainda lá estava um preto já velho que me ajudou a transportar os vários volumes a caminho do “hotel” onde, o homem trabalhava. Fomos recebidos pela dona da casa, uma mulher grande e antipática, que começou a descompor o criado: “não sabes que quando não há quartos não tens nada que ir à Estação buscar ninguém ?” Carregados com a bagagem e o peso da chuva que não parava, fomos à procura de um outro hotel que felizmente não ficava longe. Era igual ao outro, talvez um pouco mais pequeno. Estava já fechado mas o dono, um homem já para a banda dos setenta anos, ainda estava a pé e abriu-nos a porta. Desilusão: não havia quartos. As perspectivas não podiam ser piores. Encharcado, cansado, cheio de sono e tendo de omeçar a trabalhar na manhã que se aproximava, já passara à muito da uma hora, em desespero fui verificar se os dois carros estacionados à porta estariam abertos. Não estavam. O hoteleiro sugeriu que eu dormisse num "cadeirão" da sala, mas teria de me levantar às seis horas, quando voltaria a abrir o estabelecimento que era o bar/restaurante da casa. Não teria outro remédio. Embrulhado numa manta, secando a roupa no corpo, lá iria para o "cadeirão" comprido. Mas que cadeirão? só não escrevo "sui-géneris" porque havia muitos outros iguais por aqueles matos fora. Eram feitos com as aduelas de barris do vinho importado da Metrópole, e considerados "tara perdida". Já agora um ligeiro desvio até aos anos 50. Em Luanda só havia água nas torneiras umas poucas horas por dia. Aqui, lugar aos inestimáveis barris de cem
litros. Era só tirar-lhes um dos tampos, lava-los muito bem e na casa de banho, acompanhados de um púcaro grande, garantiam o banho diário. Muitas casas ficaram com um indelével círculo de ferrugem no chão. Até os Hotéis. Voltando aos cadeirões:
estas aduelas são ligeiramente curvas como se sabe, o que tornava menos incómodos o assento e as costas. Resignado, ia aceitar a situação quando o hoteleiro, agora já acompanhado da Mulher, me diz para esperar um pouco e desapareceram ambos da minha vista. Reapareceram pouco depois com a boa notícia: UM QUARTO! Acompanharam-me até à porta, desejaram-me uma boa noite e deixaram-me só. Entrei e... caiou-me a Alma aos pés. Aquele não era um quarto de hotel, ”frio e impessoal.” Era uma habitação de pessoas, tinha "naperons" nas mesas de cabeceira, retratos sobre uma cómoda antiga. Sentia-se a presença de gente, de vida. Sem dúvida era o quarto do casal. Mas se não havia quartos, onde teriam eles ido deitar-se? Busquei a resposta e encontrei-a: a cómoda teria sido arrastada até tapar o aro de uma porta - sem porta - que dava para um pequeno compartimento iluminado com duas velas. Senti movimento,espiração de pessoas, e cometi a indiscrição de olhar por cima do móvel. Ali estavam eles, os dois velhotes, sentados em duas vulgares e incómodas cadeiras incapazes de proporcionar um bom sono a quem labutara todo o dia. Todos os dias de longos anos, e que tão generosos acabavam de ser comigo que tinha metade da sua idade. Que fazer? Nada. Não me restava mais nada se não deitar-me e dormir. Não, também não. Restava-me ficar agradecido por toda a vida, e até hoje, e já lá vão perto de cinquenta anos, nunca esqueci aquele casal de hoteleiros de um “Bom Hotel do Mato. De manhã agradeci o melhor que pude, tomei o pequeno almoço, perdão o "Matabicho" assim se dizia em Angola. Os meus hospedeiros disseram que já haveria quarto a partir daquele dia. Munido da credencial que levara de Luanda, procurei o Administrador que se mostrou desolado por não ter mandado ninguém buscar-me ao combóio. Estava avisado da minha visita mas não sabia quando. Nem eu. Garantiu-me o apoio necessário e fez questão de hospedar-me em sua casa. Contei-lhe o que se havia passado naquela noite e tentei
fazer-lhe ver que não poderia cometer a ingratidão e a grosseria de abandonar o Hotel. Não se convenceu e fez questão de ir comigo falar com os hoteleiros e leva-los a aceitar a situação sem ficarem ofendidos. Claro que a aceitaram e compreenderam a situação, tal como eu a aceitei. Afinal ele era a Autoridade. De certa maneira
também eu compreendi o gesto do Administrador. Quem vivia afastado dos grandes Centros, recebia como uma benção a visita de quem de lá vinha O resto não tem história. Simples rotina. Como a Fábrica laborava vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, trabalhei aquele dia e a noite toda, e no dia seguinte apanhei o combóio de volta ao Lobito e o avião de Luanda para passar alguns dias em companhia da família. É meu único intento tornar conhecido um lindo gesto de solidariedade e Amor ao próximo dados por aqueles dois Bons Seres Humanos que quase me fizeram esquecer as vicissitudes passadas em tantos outros "hotéis" do mato, dos quais já anteriormente fiz relato. Faltou-me poder de síntese. escrevi muito e disse pouco.
Se alguém me ler que me releve da extensão. E compreenda a intenção.
litros. Era só tirar-lhes um dos tampos, lava-los muito bem e na casa de banho, acompanhados de um púcaro grande, garantiam o banho diário. Muitas casas ficaram com um indelével círculo de ferrugem no chão. Até os Hotéis. Voltando aos cadeirões:
estas aduelas são ligeiramente curvas como se sabe, o que tornava menos incómodos o assento e as costas. Resignado, ia aceitar a situação quando o hoteleiro, agora já acompanhado da Mulher, me diz para esperar um pouco e desapareceram ambos da minha vista. Reapareceram pouco depois com a boa notícia: UM QUARTO! Acompanharam-me até à porta, desejaram-me uma boa noite e deixaram-me só. Entrei e... caiou-me a Alma aos pés. Aquele não era um quarto de hotel, ”frio e impessoal.” Era uma habitação de pessoas, tinha "naperons" nas mesas de cabeceira, retratos sobre uma cómoda antiga. Sentia-se a presença de gente, de vida. Sem dúvida era o quarto do casal. Mas se não havia quartos, onde teriam eles ido deitar-se? Busquei a resposta e encontrei-a: a cómoda teria sido arrastada até tapar o aro de uma porta - sem porta - que dava para um pequeno compartimento iluminado com duas velas. Senti movimento,espiração de pessoas, e cometi a indiscrição de olhar por cima do móvel. Ali estavam eles, os dois velhotes, sentados em duas vulgares e incómodas cadeiras incapazes de proporcionar um bom sono a quem labutara todo o dia. Todos os dias de longos anos, e que tão generosos acabavam de ser comigo que tinha metade da sua idade. Que fazer? Nada. Não me restava mais nada se não deitar-me e dormir. Não, também não. Restava-me ficar agradecido por toda a vida, e até hoje, e já lá vão perto de cinquenta anos, nunca esqueci aquele casal de hoteleiros de um “Bom Hotel do Mato. De manhã agradeci o melhor que pude, tomei o pequeno almoço, perdão o "Matabicho" assim se dizia em Angola. Os meus hospedeiros disseram que já haveria quarto a partir daquele dia. Munido da credencial que levara de Luanda, procurei o Administrador que se mostrou desolado por não ter mandado ninguém buscar-me ao combóio. Estava avisado da minha visita mas não sabia quando. Nem eu. Garantiu-me o apoio necessário e fez questão de hospedar-me em sua casa. Contei-lhe o que se havia passado naquela noite e tentei
fazer-lhe ver que não poderia cometer a ingratidão e a grosseria de abandonar o Hotel. Não se convenceu e fez questão de ir comigo falar com os hoteleiros e leva-los a aceitar a situação sem ficarem ofendidos. Claro que a aceitaram e compreenderam a situação, tal como eu a aceitei. Afinal ele era a Autoridade. De certa maneira
também eu compreendi o gesto do Administrador. Quem vivia afastado dos grandes Centros, recebia como uma benção a visita de quem de lá vinha O resto não tem história. Simples rotina. Como a Fábrica laborava vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, trabalhei aquele dia e a noite toda, e no dia seguinte apanhei o combóio de volta ao Lobito e o avião de Luanda para passar alguns dias em companhia da família. É meu único intento tornar conhecido um lindo gesto de solidariedade e Amor ao próximo dados por aqueles dois Bons Seres Humanos que quase me fizeram esquecer as vicissitudes passadas em tantos outros "hotéis" do mato, dos quais já anteriormente fiz relato. Faltou-me poder de síntese. escrevi muito e disse pouco.
Se alguém me ler que me releve da extensão. E compreenda a intenção.
2 Comments:
Disse muito!
Em tempo de Natal uma história que contém o espírito de dádiva que deveria prevalecer.
Um beijo.
Tia Maria: obrigado pelo comentário.
falei muito ( mal ) dos hoteleiros do "mato". Estes foram uma excepção à regra.
Mas foram iguais à hospitalidade que era
timbre das gentes de todo o interior.
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