sábado, novembro 18, 2006

Isto só em África !...

Claro que não será bem assim, mas os espaços imensos e o isolamento a que obrigam, tornam se propícios ao parecimento de criaturas com bizarras personalidades e atitudes, chocantes primeiro, depois banalizadas pela constância. Não vou começar por uma personagem bizarra. Pelo contrário, trata-se de alguém muito bem educado e ocupando uma posição de relevo em Angola: o Engenheiro Benevides – descendente de Salvador Correia de Sá e Benevides. Era ao tempo Presidente do Instituto do Café de Angola, entidade que me havia encarregado da execução do Documentário "Café de Angola". Tinha pois de filmar em várias instalações daquele Instituto. Fui com um colega de trabalho pedir ao Presidente um documento que nos autorizasse o acesso à Fábrica de Beneficiação de Café, e a recolha das imagens necessárias. O Engenheiro Benevides começou a escrever um cartão enquanto nós o observávamos. Talvez se tenha apercebido da nossa indiscreção. Subitamente suspendeu a escrita, ergueu os olhos para nós, e disse com alguma atrapalhação: "Querido, é o nome do Encarregado da Fábrica." De facto, o que tinha acabado de escrever no Cartão era justamente "Querido". Acabámos por nos rir todos três sem ter pedido desculpa pela indelicadeza da bisbilhotice. No âmbito do mesmo filme desloquei-me à Gabela, na Região do Amboín grande produtora de Café. Levava uma Credêncial do Instituto apresentando-me às Autoridades Administrativas que me dariam o apoio logístico de que precisasse. Também me acreditava perante a C.A.D.A, Compª Agrícola de Angola, cuja Fazenda Boa Entrada, era um exemplo de organização. Administrada pelo Major Corte Real pessoa de uma gentileza não muito fácil de encontrar em terras do interior. O primeiro contacto que procurei foi o Administrador Melício Nunes, de que já ouvira falar, como era inevitável dada a fama que o acompanhava. Era espalhafatoso, sem cerimónias, fazendo e dizendo o que lhe vinha à cabeça. Era tido como meio louco. Nessa tarde mandou-me dizer que estava ocupado, e que o esperasse no Café ao fim da tarde. Assim fiz, e logo que chegámos à fala apresentei a Credencial e, ao mesmo tempo um documento do Instituto dando algumas dicas sobre locais e actividades que conviria destacar. O Melício começou a ler com muita atenção; tanta que a dada altura levanta a voz, olha para mim e exclama: " Festa das Colheitas!? No Olho!..." Que nunca tal coisa fora vista naquela Região. Aproveitou para desancar os autores do documento. Entretanto pedi-lhe que me facilitasse transporte para a CADA, que aliás não ficava longe. Aí, sem negar o auxílio, aproveitou para soltar a bilis sobre o Major. Pelo que pude depreender a questão estava na escolha do Major Corte Real, que optara por mandar construir as residências dos funcionários em terrenos da própria Fazenda preterindo os da Vila, como queria o Administrador. Aliás o "Bairro" da C.A.D.A. estava muito bem localizado e era bastante agradável. Foi por aqui que começaram os "desabafos" do Melício. Perante uma pessoa que acabara de conhecer; à mesa do café, sem o menor constrangimento, abre-se nestes termos, referindo-se ao Major : "ele julgava que com isso me f..., mas quem o f... bem, foi a minha Madrinha que é a Nossa Senhora da Conceição, e que lhe mandou umas boas cargas de chuva quando ele tinha o café a secar nos terreiros". Fiquei tão atrapalhado com a alegada posição da pobre Madrinha, que ainda agora hesitei em escrevê-lo. À noite fui fazendo os meus apontamentos , e anotando aquilo que me parecia mais exequível, e o que julgava mais difícil. Assim foram correndo as filmagens por alguns dias. Quando regressei a Luanda fui informado pelo meu colega Lemos Pereira, responsável pela logística e os contactos na Capital, de que o Engº Benevides tinha urgência em tomar conhecimento do que já estava feito, e do que deveria ainda ser incluído. Com a pressa, não dei ao meu colega os apontamentos feitos sobre o joelho durante o trabalho e que ele teria de decifrar e dactilografar. No dia seguinte o Engenheiro recebeu-nos no Gabinete (o mesmo do Querido ) e pediu os apontamentos que com alguma dificuldade, foi lendo e pedindo esclarecimentos quando lhe parecia necessário. Até que, levanta os olhos e pergunta: "Aqui, onde se fala da Festa das Colheitas, não percebo o que quer dizer no olho." Fiquei pouco menos que siderado. Tinha-me esquecido da surpreendente e curiosa expressão do Melício, e como a tinha "imortalizado" no meu canhenho. Ao mesmo tempo senti um calafrio a percorrer-me a espinha: "e se eu também tivesse "enriquecido" a minha escrita com a referência à Madrinha do Melício !?

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Vim parar ao seu blog por causa de uma fotobiografia do Vasco Santana que estou a produzir para o Círculo de Leitores e só lhe quero dar os parabéns pelas suas preciosas memórias. Que não se percam, são os meus votos.

9:53 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Origado Joquim Vieira pelas generosas palavras que me dirigiu. Vindas de quem vêm, são ainda mais valiosas. Bem haja. João Silva

12:52 da manhã  

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