terça-feira, outubro 24, 2006

Uma manchinha de sal

Corria o ano de Mil Novecentos e Cinquenta, Acabara de chegar a Angola. Comecei a andar de carro pelo interior – o "mato"- como era geralmente designado – e tudo me amedrontava e surpreendia. E se, com os anos e as muitas viagens, deixei de me amedrontar, cada vez mais me surpreendi, maravilhei e... horrorizei com as obras da Natureza: desde as mais belas e delicadas flores, às mais frondosas florestas, aos rios caudalosos. . . às destruidoras enchentes e à desertificação de regiões imensas.E aqui chegado, estou onde queria: no Deserto de Moçâmedes, onde, às mais desoladoras paisagens se sucedem outras de fascinante beleza. No entanto não deixa de ser um Deserto, cuja vastidão, silêncio e isolamento nos fazem sentir tão pequenos, como na realidade somos. Creio ter ouvido de um Geólogo a explicação para a persistência das secas nesta Região. se bem entendi, devem-se a dois factores diversos mas que se completam: a Serra da Chela com os seus quase dois mil metros, que desce até ao nível do Deserto formando uma parede quase a prumo com diversos quilómetros de largura. As chuvas abundantes na
Serra, são impedidas de avançar para Oeste em direcção ao Mar, porque os ventos são constantes e fortes soprando sempre do Mar para terra durante muitos anos O ano de 1950 foi o primeiro ano de chuvas depois de oito anos de seca. Durante os meus trinta anos de Angola não me lembro de ver chover no Deserto mais do que duas ou três vezes.. Recordo-me que, descendo eu a Serra pela estrada de Moçâmedes debaixo de forte chuvada, vi correndo a gtande velocidadqe um carro vindo do lado de Moçâmedes levantando grande núvem de poeira. Ao chegar ao sopé da Serra, a poeira cessou subitamente e o carro entrou nas chuvas como se se tivesse aberto uma cortina. São tão constantes os ventos do Mar que, e eu aprendi isso logo na minha ida ao Deserto que quem se perca ou tenha o carro avariado, deverá esperar pelo anoitecer, e caminhar sempre com o vento a mais ou menos 45º pela esquerda. Assim irá ter inrfalivelmente à Costa onde existem muitas pescarias. onde encontrará socorro. NUNCA precisei, felizmente!... A Natureza, ao logo de milénios, desertificou imensas parcelas da Terra. Mas, sem ter "vontade própria", fê-lo com toda a "inocência". Mas a Humanidade, em plena consciência, pratica contra Ela, toda a casta de crimes ecológicos, devastações, etc., cujos efeitos, mais tarde ou mais cedo virá a sentir, e a pagar . . .com juros. Circuito fechado afinal! Mas a que vem tudo isto? Acho que foi o mistério e o fascínio do Deserto que me desviaram do rumo que me propusera, e me impuseram um outro. Porque me facilita a narrativa, permito-me passar do Deserto de Moçâmedes "conseguido por meios naturais" para outro quase artesanal Em Catete, a cerca de setenta quilómetros de Luanda fui encontrar terrenos completamente degradados, até ao subsolo. Porquê, e como, fui isto possível ? Pelo regime de concessões que eram requeridas tanto por Grandes Empresas Agrícolas, como por simples cidadãos, muitas vezes sem suficiente capacidade profissional e/ou económica. Não tenho nada a opor, pelo contrário, todos têm direito à Vida, independentemente do "tamanho". Espanta-me somente a aplicação de um principio democrático num tempo e num país que o não eram. Mas se dou graças pelo princípio, lamento o "Como". As concessões de terras eram dadas a quem as pedia mediante a apresentação de um "croquis" da área pretendida, acompanhado de uma declaração autenticada pelas Autoridades da Zona, comprovando não haver ocupação humana na área. Claro que bastas vezes se "provava" a ausência de vida que, a ter existido só atrapalharia. Mas a verdade é qua as pessoas, muitas delas, não tinham bem a noção de como as questões oficiais se processavam. Já agora aqui vai um caso paradigmático que me foi contado pelo Engº Agrónomo Mesquitela, Director da Estação do Instituto do Café na Gabela ou em N’Dalatando, não posso precisar: Alguém terá apresentado às Autoridades competentes, um pedido de concessão de X h acompanhado da declaração e do "croquis" da área que se estendia por alguns hectares dos terrenos. . . no Instituto. Voltemos porém a Catete que é um bom exemplo As terras requeridas naquela zona destinavam-se a grandes plantações de algodão, cultura muito exigente, que esgota a terra rapidamente, se a esta não forem restituídos os princípios que o algodão "sugou". Para além disso deveria ser feita rotação de culturas, o que raramente se fazia, ou não se fazia de todo. Os terrenos de Catete passaram a ser explorados por uma Grande e conhecida Empresa, e quando digo explorados, uso a palavra na sua mais violenta acepção. Os terrenos foram exaustivamente cultivados, até ficar o subsolo à vista, sem a mínima capacidade de produzir, sequer, hortigas . Mas não faz mal, dirão o pequeno agricultor inculto e o Ilustre Empresári: "não faz mal. O terreno não é meu (nosso) vamos já requerer outra concessão aqui ao lado". E assim se arruinaram as terras de Catete. Era doloroso ver o terreno no "caroço", a ser lavado e levado pelas chuvas e a deixar grandes fendas que mais facilitavam a velocidade da água e a erosão da terra – perdão! do terreno, "a terra o lucro a levou". - Ninguém me contou. Eu o vi, e filmei para o Documentário Cinematográfico " Luta Contra a Erosão". Está portanto, tudo devidamente documentado. Passados alguns anos tive ocasião de presenciar, e filmar – como o Homem, melhor dito: - dois homens; exactamente dois; poderam em poucos dias fazer o que à "pobre" Natureza levaria milénios. Refiro-me à "feitura" de Desertos. No Sul da Huíla e no Quando-Cubango, uma grande Empreza Mineira explorava Ferro. Neste minério como noutros: asfalto, zinco. mica, volfrâmio, manganês e, se não erro também o cobre: as explorações eram feitas a Céu-Aberto. "Oh! deuses! quando é que, pelo menos uma vez na vida, chegarei directamente ao fim de um relato!? Não posso ocultar este episódio, Rodava nesta altura o Documentário "Panorama Mineiro de Angola", como todos os outros, encomendado pelo Estado. Para tanto era possuidor de uma Credencial do Governo Geral, que me abria todas as portas das Emprezas do Sector... Todas não: presente a Credencial no Escritório da Diamang em Luanda, bastou um telefonema para a Lunda, e eu recebia um rotundo não. Puz a questão no G.Geral e a resposta foi: "bem, se eles não querem..." Assim, quanto a Minas, o Panorama ficou-se pelo quintal. As Minas de diamantes, de longe as mais e importantes... não existiam.A seguir em importância era, assim o julgo, o FERRO. Foi nesta última Exploração que, numa planície a perder de vista, já quase inteiramente descascada, presenciei o trabalho de duas gigantescas máquinas encarniçando-se contra um resto de terreno com uma árvore no meio. A única até ao horizonte .Apercebi-me do que iria acontecer. Filmei uns metros daquele processo sumário de desertificação; esperei duas ou três horas. As máquinas afastaram-se e voltei a filmar. Era o deserto completo: nem capim verde, arbustos, árvore enfim, nem Natureza. Assim se fazem "à mão" e em poucos dias, zonas desérticas, embriões de futuros autênticos Desertos ". Foi um momento de emoção. ! Havia quem fosse tão “previdente” que pedia logo uma área maior do que podia cultivar, não para fazer rotação de culturas, como seria correcto. Mas para o explorar até à exaustão. Os terrenos de Catete foram levados a este estado por uma grande e conhecida Empresa. Não assisti a este processo de degradação, anterior à minha chegada a Angola. Mas fiz, nos anos cinquenta , um Documentário sobre a “Luta Contra a Erosão”, assim se intitulava. Por indicação dos Serviços de Agricultura, ao tempo dirigidos – se me não atraiçoa a memória – pelo Engenheiro Guilherme (?) Guerra. Filmei os terrenos de Catete entre outras desgraçadas zonas. Tive ainda a oportunidade de filmar, no âmbito da mesma, luta, o cultivo segundo as curvas de nível (como as do Douro) e ainda a defesa de povoações como Sanza Pombo no extremo Norte do Distrio do Uije, ameaçada por três enormes ravinas que caminhavam já quase dentro da Povoação. Aí tive a felicidade de filmar na mesma ocasião três fases sucessivas da luta vitoriosa da perseverança e do saber dos técnicos da Geologia e Minas e da Agricultura. Uma das ravinas já tinha sido dominada, estava terminada e já revestida da vegetação que lhe permitiria resistir às maiores chuvadas da Região. Outra estava em fase de realização, o que permitiu compreender toda a complexidade dos trabalhos. Uma terceira estava ainda em estado "selvagem" e deixava antecipar o perigo que a Vila correria se não lhe pusessem travão.Também a Avenida do Alto das Cruzes, frente ao Cemitério do mesmo nome em Luanda que chegou a ter uma só faixa de rodagem foi defendida e recuperada pelo sistema de "rampiamento". Feita em meados da década de cinquenta revelou-se uma obra definitiva: em fins de setenta e nove, quando deixei Luanda, estava "como nova". Não havia sinais de erosão, quase um quarto de Sèculo depois. No Sul de Angola, nas Minas de Ferro de Cassinga, filmei ( quase) o princípio da destruição – os ténicos chamam-lhe "desmonte" do Morro de Chamutete, ex-libris do local a que deu o nome. A destruição iria ser completa. Era todo minério: FERRO!, O Pintor Neves e Sousa que por lá andou antes de mim, imortalizou-o num magnífico quadro.
Para o desmonte do Morro foi usada uma das enormes máquina a que já me referi. Empurrada
por um não menos potente buldozer, abria a barriga e com uma lâmina raspava e "engolia" literalmente o capim e o terreno que era afinal o minério, andando à volta do morro desenhando uma espiral do alto do Morro fazendo-o cada vez mais baixo até "à solução final:" um terreno raso, . . feio e inútil. Felizmente não vi esta fase; deduzo. A explicação dos técnicos, era que naquele local o minério possuía alto teor de ferro. Informações a utilizar na locução do Doumentário “Panorama Mineiro de Angola” O que eu pretendo com tão longa e com certeza maçadora prosa, é acentuar, como digo no início, que os homens ultrapassam a Natureza na eficiência e rapidez na destruição do Planeta. Também não é grande proeza: senhores como são, de maquinas e tecnologia de que a Natureza não dispõe. "Assim também eu!" Não foi esta a primeira e, muito provavelmente não será a última vez que saio de um "Título" directamente para um caminho que nada tem a ver com o que seria de esperar. Não sei explicar o porquê, e nem me vou flagelar por isso Desta vez julgo merecer um pouco de compreensão É que a ideia do episódio me surgiu quando atravessava o Deserto de Moçâmedes vindo de, Pediva, Virei ? a caminho do Lubango, não me recordo e também não é importante. O que é importante é que já estava muito longe da última refeição, e não sabia a que distância estaria da próxima Finalmente encontrei numa isolada estrada uma miserável loja de comércio,, isto é, de vender principalmente alcool. Comeria de quase tudo o que houvesse (menos mocotó). Apareceu-me o lojista, um homem que, se o visse noutro ambiente, diria que tinha uns bons (maus) sessenta anos. Ali bem poderia ter cinquenta. Perguntado disse-me que só me poderia arranjar uns ovos mexidos. Aceitei como a um manjar dos deuses. e o homem veio por numa mesa à porta, debaixo de um arruinado telheiro., um prato de esmalte um tanto esbotenado e um garfo de ferro que limparia a um guardanapo, se o houvesse. Sentou-se à minha frente para conversar. A coisa que ele mais desejava e de que mais precisava, embora talvez não se desse conta disso. Tudo ali mostrava pobreza, abandono, desmazelo. Enquanto lá dentro alguém se ocupava dos meus ovos, fomos conversando até que ele se levantou, foi lá dentro e trouxe-me uma frigideira para cujo aspecto evitei olhar Despejei literalmente os ovos para o prato e iniciei um feroz ataque enquanto olhava para o meu interlocutor. Primeira garfada, primeiro enjoo: os ovos não tinham levado ponta de sal. Disse isso ao homem que soltou um berro na língua local e pouco depois surge-me uma velha "mumuhila" com o "traje" tradicional, isto é, uma tanga e o ressequido peito cobrindo a nudez do tronco.. A "limpeza" também era a tradicional e a possível naquela região. Temi que tivesse sido ela a mexer os ovos. Como não dei notícia de mais ninguém em casa, procurei distrair a atenção ouvindo o meu hospedeiro. Mas como precisava do sal olhei novamente para a mulher que me estendia amigavelmente a mão. Na palma daquela mão negra brilhava por contraste uma "manchinha" de sal. A Alma não me caiu os pés porque já tinha caído antes, olhei para o homem que olhava para mim, suspendendo a conversa, à espera que eu me servisse. Que podia eu fazer? Servi-me do sal, comecei a falar com certa rapidez, e enquanto atraía atenção dele fui espalhando o sal à volta do prato, do lado de fora, entenda-se, não digo rezando que não sei, mas desejando que ele não desviasse os olhos dos meus. Consegui. E, consegui, sobretudo comer os ovos mexidos sem ponta de sal.. . .e sem vómitos.Esta estória não é filha única. Havia muitas outras por Angola fora...
.Agora, Porquê manchinha ? porque era pouca quantidade, se fosse maior porção seria mancheia de sal.- Estas expressões explicam-se por si só.
Nem mancheia tem a ver com Mão, nem manchinha com Mancha .
Assim se falava no meu Bairro nos longínquos tempos da minha juventude
.Espero e desejo que por lá se diga finalmente Mão cheia... e que seja de Pão, Amor e Felicidade !