segunda-feira, agosto 14, 2006

O senhor Angelo

Antes de falar do Sr. Angelo, deixem-me situar o"cenário" de há oito décadas. Desde os anos oitenta do Século passado que ali não ia. Fui lá hoje, 8 de Agosto de 2006, isto é, não fui, levou-me o meu neto, que as minhas pernas conhecem bem o caminho mas não o podem percorrer sozinhas. E lá estava tudo como recordava desde a minha infância, adolescência e idade adulta, Lá está a Rua dos Remédios, a bifurcação com a Rua do Vigário, o começo da descida para o Chafariz de Dentro com sua Rua de S. Pedro, entrada para a Alfama profunda, e onde se vendia peixe à porta de cada casa. Mas eu não estou aí. Continuo frente è Rua do Vigário e olho para direita e vislumbro o Largo de D.Rosa com as escadinhas que levam à lembrança de um episódio anterior: o “Egas”, nome que escondia o “Fuas”. Este o verdadeiro protagonista do acontecido. Não vale a pena esconder mais. Não há ninguém daquela família, nem provavelmente vizinhos à roda dos noventa. Também aí assisti a um “Velório” de espantar, e que já relatei noutro passo. E lá estou eu desfiando recordações encostado à mesma parede onde me encostava há quase oito décadas com os meus amigos e de onde mecanicamente nos desencostávamos e voltávamos a encostar, ao ritmo da passagem do polícia de giro. Tudo mudado como eu já sabia, (menos "a parede") . Só encontrei um artesão trabalhando em cobre, que com a idade de setenta e cinco anos, "sabe" que no local da sua loja havia um lugar de hortaliça. Mas eu sei: era da mãe de um dos meus amigos, que andava a aprender saxofone nos poucos momentos que se escapava à venda de couves. Era o"Saxonabo." Aprendeu e chegou a fazer parte de um Grupo Musical, dos muitos que "abrilhantavam" os Bailes, que ainda eram mais. Mas ali o importante era a pequena Leitaria da família Gonçalves, que nós à noite enchíamos com as nossas discussões de futebol, único assunto que era permitido discutir em voz alta. Ao lado era a Tipografia do Sr, Serra, pai do Professor Serrinha e do Zé, este tipógrafo, e que fui encontrar há talvez quinze ou vinte anos, porteiro de um edifício da Rua Victor Cordon. Do Adelino Serra, o Serrinha, mais velho do que eu três anos tive notícias há já muito tempo mas não pude vê-lo . A Tipografia tinha ganho o nome de Museu porque ao lado da porta tinha uma pequena vitrine com revistas (?) que já lá deviam estar quando nós viemos ao mundo e que por lá ficaram até à mudança num pequeno Snac-Bar, ao lado da Leitaria que teve a mesma sorte. Mas é da Tipografia que tenho as mais agradáveis e a mais dolorosa das recordações. Depois da morte do velho Serra a Casa foi tomada por um tipógrafo, o Sr. Angelo, que mais do que ganhar dinheiro, vivia a paixão da profissão. E falava dela com um carinho tocante. Adorava explicar como tudo era complexo e apaixonante. .Falava-nos do"componedor," dos "quadratins," etc., e ficava radiante quando um de nós acedia a pegar-lhe e a lá meter as letras de pernas para o ar. Os tempos correram, nós fomos crescendo com eles, e com empregos duvidosamente estáveis , só à noite nos reuníamos na leitaria dos Gonçalves, `à hora a que a Tipografia já fechara. Mas eu não tinha essa rotina, trabalhava em Cinema,, um mundo de profissões as mais variadas, e que só se podem abraçar com paixão e. . . sacrifício. Por isso eu esperava semanas, ou meses pelo início do próximo filme "que vai já começar para a semana que vem". Assim, poderia ter largos períodos de desemprego, seguidos de períodos igualmente longos em que não parava nem para dormir, (chegava a trabalhar-se de dia ara um filme, e de noite para outro. ) Mas nos "maus" períodos continuava a frequentar a Tipografia do Sr. Angelo. Era um homem muito doente, creio que sofreria da doença da profissão: envenenamento pelo chumbo . Tinha um aspecto mais de avelhentado do que de velho. Usava uns óculos de lentes grossíssimas por trás das quais brilhavam uns olhos inquiridores a que a espessura das lentes dava um ar de olhos de peixe. Pessoa muito culta, coisa comum entre os "compositores que faziam questão de se demarcar dos "impressores". Tínhamos um bom relacionamento quase de Avô para neto. Convidava-me frequentemente para jantar ou lanchar em sua casa com a família. Moravam na parte baixa de Alfama, quase no extremo, junto do Museu Militar e póximo de Stª Apolónia .Imperdoavelmente não desci ontem até ao beco para recordar o nome. O nosso convívio foi bruscamente interrompido pela minha prisão em Janeiro d 1934.. No meu regresso, dois anos depois, estreitou-se ainda mais a nossa amizade. O Sr. Angelo era um grande admirador dos clássicos portugueses, alguns dos quais eu havia encadernado e. . .devorado na prisão. Eça, Ramalho Garret etc., e o incontornável Don Quixote, este infelizmente em espanhol. Tudo isto cedo demais. O mesmo se passou com outros autores lidos na prisão: Emile Zola ( Germinal, Fecundidade, O ventre de Paris. Etc. o clássico de Vítor Hugo, "Os Miseráveis." Guerra Junqueiro, com o super proibido "A Velhice do Padre Eterno," tudo isto recebido através do nosso "correio" de reconhecida eficiência. Tudo isto não. Devo fazer justiça a alguns livreiros a quem enviávamos pedidos de livros que eram geralmente satisfeitos. Só mais tarde vim a perceber que a leitura febril, e a pouca idade , não me terão permitido ler o que estava para além das palavras, das belas frases de efeito. Foi o Sr. Angelo que me mostrou que o "Gavroche" não era só o menino que morrera nas barricadas. Que o "Senhor Ventura"ou "Jean Valjean" permanecem vivos através de injustiças , das quais eu próprio fui testemunha, e aqui quero deixar o relato de um de entre tantos outros. O camarada que fora preso comigo, foi condenado a dez anos de degredo. Tinha 18 anos, Cumpriu CATORZE. Só voltei a encontra-lo em 1993, com setenta e sete anos bem marcados no rosto envelhecido. Uma vez mais me perdi pelas veredas da memória.. Peço perdão e voltemos ao Senhor Angelo, que, como digo mais acima, se abria bastante mais, comigo desde o meu regresso. Contava-me as suas lutas de sindicalista durante a Primeira Republica. Sempre com um olhar brilhando por detrás das grandes lentes, mas que não podiam esconder o sofrimento. Durante aproximadamente um ano tive trabalho quase continuo e com várias estadias na província. Não vinha ver os meus Pais se não por rápidas sortidas nocturnas, até porque morava no lado oposto da Cidade e porque o trabalho me ocupava o dia inteiro e por vezes também parte da noite quando não a noite toda. Quem alguma vez trabalhou em cinema, me entenderá. Parece que estou a sentir a consciência pesada. E de certo modo estou. Finalmente um dia dirijo-me à Tipografia, e estava lá o Zé Serra. Perguntei pelo sr. Angelo, e o Zé , com um ar de admiração, diz: "o Sr. Angelo morreu há meses" Fiquei paralisado. Não poderia eu ter arranjado durante aquele longo período um "bocadinho" para ir visitar o meu Amigo ? Mas eu não podia ter imaginado que o Sr Angelo, o meu Amigo tivesse adoecido de repente. Não pude aceitar que a família não tivesse comunicado a meus pais que certamente me avisariam . E para cúmulo de falta de sensibilidade, ainda tentaram convencer o Sr, Angelo de que eu me teria esquecido dele. Mas ele não se esqueceu de mim. Sempre que a mulher e a filha o iam ver ao hospital, ele dizia: " não, ele não sabe, se soubesse viria ver-me." E terá sido assim até ao último dia. Nunca descreu da minha amizade. Terá essa certeza sido um bálsamo para o seu desgosto ? ter eu essa certeza e não sentiria tanto o remorso que me assalta sempre que, como agora, penso no Sr. Angelo, o meu inesquecível Amigo da Tipografia da Rua dos Remédios, e da minha juventude.

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Prezado Senhor José Silva:

Escrevo-lhe do Brasil. Fiquei muito surpresa e encantada com suas narrativas, e, mais ainda, porque estava procurando alguma referência de Gustave Gué. Seu blog é o único site que cita esse caçador suíço. Maravilha!
Acontece que, atualmente, estou fazendo a tradução do inglês para o português de um trabalho, na verdade um diário das caçadas realizadas a partir dos anos 50 pelo brasileiro Jorge Alves de Lima e Silva, no qual ele menciona essa pessoa. O Sr. Jorge viveu na África, particularmente em Moçambique, e tem hoje 80 anos. Seria incrível se o Sr. o conheceu naquela época, mas é bem provável que o nome dele lhe seja familiar.

Gostaria de saber se o Sr. possui uma foto de Gustavo Gué. De qualquer modo, aguardo ansiosamente sua resposta.
Um abraço,
Arlete

5:18 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Cara Amiga Dona Arlete. Sou fraco em computador.Já escrevi uma resposta mas que se perdeu pelo caminho. Vai em ling. telegf.Não tenho foto Gué. Tenho epiófdios. Era um gentlemean de 40 quilos de corajem, competência e simpatia. Tinha uma cicatriz antiga no pescoço desde debaixo do queixo até à orelha esquerda. Um búfalo ferido tinha-o pendurado dum corno e foi um dos seus caçadore nativos que acabou com o búfalo e o despendurou. Ainda o conheci com a família a viver com estatuto vitalício no Acampamento do Gué Tinha uma ponraia incrivel servida por uma prsença de espírito indispensável. Filmamos dosi elefante correndo em fug masvque para cinema simulava carga. Eu filmei-os de lado proregido pelo "Capitão" e um camarada meu filmou-o de frente protegido pelo Gué munido de uma carabina 404, cujo oimpacto corresponde a duas toneladas, mas que só levava 4 (quatro cartuchos) Como os filmei de lado vi-os encolher-se como se tivessem chocado com um muro. .Foram atingidos numa zona mole (?) da testa e cairam instantneamente, o primeireo a dez metros da "câmara" e o outro a um comprimento do primeiro. e o Gué só disprara dois tiros...nem teria havido tempo para mais. Tinha um Acampamento de Caça com todas as comodidades mcessaárias, embora em palhotas. Ficava
na Zambézia, e não me recordo da localisação exacta, mas recordo-me de filmarmos muitos búfalos nos Tandos de Marromeu. O Sr. Jorge Lima da Silva, já´que é mais jovem dez anos do que eu melhor se lembrará.Não sei se lh terei sido útil, mas foi muito agradável "falar" consigo e recordar coisa de que aliás nunca me esquecerei. Os melhores cumprimentos do João Silva.´

10:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Prezado Sr. Silva:
Fiquei aguardando sua resposta no programa de email do Windows, e, como não a recebi por lá, resolvi dar um novo passeio pelo seu site na internet e aqui estava ela! Muito obrigada pela gentileza.

Na sua narrativa, o Sr. Jorge Alves de Lima conta que conheceu Gué logo que chegou em Beira, e o descreve como um dos maiores caçadores de búfalos da África, um homem de aparência frágil, mas dotado de uma determinação de ferro. As informações que o Sr. me passou e as contidas no livro do Sr. Lima são semelhantes. Gostaria de ter uma foto do Gué para ilustrar o trecho sobre ele, já que o Sr. Lima apresenta inúmeros outros caçadores (e fotos) com quem conviveu naqueles tempos.

A fim de familiarizar-me com o vocabulário específico sobre a vida, fauna e caçadas na África, tenho recorrido a inúmeros sites, inclusive o seu. Aproveito a oportunidade para perguntar-lhe se conhece o site
http://www.geocities.com/vila_luisa/Apresentacao.htm , de Celestino Ferreira Gonçalves, outro apaixonado por Moçambique. Tentei comunicar-me com ele, mas o seu endereço de email havia mudado, e minha mensagem voltou. Por acaso o Sr. o conhece?

Se desejar, fique à vontade para responder esta para meu endereço arlete@flash.tv.br
O seu endereço tivolialfama@yahoo.com também mudou?
Mais uma vez, agradeço de coração a sua resposta tão amável. Sinto-me privilegiada pela sua atenção.
Um cordial abraço,
Arlete

10:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Presada Amiga Arlete. Confoma j´lhe hvia dito, não posuo, infelimente nenhuma foto do G.Guê. Também não conheço os outros caçadoresv de que me fala. Passei trinta anos em Angola, mas só dois meses em Moçambique, altura em que tive a felicide de onhecer o G.Guê. Em todo o caso, mando-lhe aqui mais um relato sobre: "Riscos e xistes". queilustram o espírito e a coragem do Guê. umprimentos e disponmha sempre. João Silva.

10:55 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Presada Amiga Arlete. Confoma j´lhe hvia dito, não posuo, infelimente nenhuma foto do G.Guê. Também não conheço os outros caçadoresv de que me fala. Passei trinta anos em Angola, mas só dois meses em Moçambique, altura em que tive a felicide de onhecer o G.Guê. Em todo o caso, mando-lhe aqui mais um relato sobre: "Riscos e xistes". queilustram o espírito e a coragem do Guê. umprimentos e disponmha sempre. João Silva.

10:55 da tarde  

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