De como a Custódia poderia ter feito só... 443 anos
Em fins dos anos quarenta do Século passado, creio que em 1949, realizou-se no Porto uma Exposição de Joalharia Portuguesa, instalada no edifício sede do Grémio dos Joalheiros. Para bem se entender o interesse desta história , se algum ela tiver, será preciso mergulhar em mais de cinquenta linhas de texto. Ainda está a tempo de se poupar . Lembro que a leitura é um acto voluntário; depois não se queixe. Mas recuando até ao - "bem se entender" - é necessário localizar o Grémio: ficava numa rua muito (?) larga, arborizada, por isso muito escura, particularmente à noite . Era próxima do Largo dos Póveiros, ao que suponho, lugar pouco recomendável, indiferentemente, de dia e à noite. Ocupava um palacete antigo com uma porta alta e larga tendo em frente um lance de alguns degraus de pedra que davam acesso a um rés-do-chão alto com duas grandes janelas ogivais acompanhando o "pé-direito" das dependências que tinham os tectos altos como era uso da arquitectura à época da sua construção (um desperdício, ou "esperdício" como diria um moderno pato-bravo: "naquele espaço construía-se mais um andar"). Às janelas daquele rés-do-chão, qualquer homem sobre os ombros de outro teria fácil acesso. Pois foi num local tão vulnerável que se instalou a Exposição, tendo, no entanto, todos os cuidados julgados necessários à segurança daquele acervo de preciosidades, algumas de enorme valor artístico e histórico, portanto, sem preço. Mas a que venho eu com toda esta prosa, perguntarão. Aqui vai a explicação. Uma Produtora Cinematográfica de Lisboa fechara contrato com o Grémio para a execução de um documentário que "imortalizasse" a Exposição. Contrataram-me então para realizar, aliás filmar, a Exposição (sou operador e não realizador). Acertados todos os pormenores, partimos para o Porto, eu e o Chefe electricista da Tobis, ao tempo o João de Almeida , meu camarada de trabalho de muitos anos e muitos filmes e grande Amigo que não sei se ainda me acompanhará. Levámos o material de iluminação necessário para o trabalho que nos esperava.. O cenário que se nos deparou à chegada ao Porto não podia ser mais desolador: era pleno Agosto, fazia um calor tórrido; não chovera quase nada no Inverno anterior, e o Porto sofria uma seca como já se não via há anos. Talvez como a de agora, em 2005. A Barragem do Lindoso (?) estava praticamente esgotada.. Por isso vigorava na cidade uma restrição drástica ao consumo de energia, que só havia desde as sete da tarde, até às sete da manhã seguinte. Daí que a Exposição só pudesse abrir ao público, também às sete horas. A Expo encerrava ao público às onze . Foi, pois, a partir daquela hora que pudemos iniciar o trabalho, até ao acabar a luz às sete da manhã . Precisávamos de um homem que ajudasse a manusear os projectores que eram pesados. Nada melhor do que perguntar aos polícias que faziam guarda interna 24 horas por dia, onde poderíamos encontra-lo. Indicaram-nos o Largo dos Pòveiros, mesmo ali ao lado onde, segundo eles, havia sempre desempregados. Lá fomos, o João e eu em busca de mão de obra não especializada. A nossa primeira impressão foi a de que aqueles homens deveriam ser marginais desde o berço que nunca tiveram. Então chamavam-lhes vadios. Como iríamos meter um deles no meio de tanta tentação, seria como pôr o bebé ao lado da marmelada. Estávamos para dar meia volta quando dou de caras com um moço que, anos antes, tinha encontrado muitas vezes na Rua dos Remédios, em Alfama, o meu bairro. O aspecto não o recomendava mais do que aos outros, mas pelo menos, aquele era conhecido. Depois, para que serve o sentimento bairrista ? Contratámo-lo por um bom salário para as poucas noites que nos esperavam. E agora, só agora, depois de mais de cinquenta linhas consigo chegar onde me propus: à Exposição. Esta ocupava duas salas, uma delas , a maior era a que possuía as duas grandes janelas que já referi. As peças estavam encerradas em vitrines, mas era preciso tirá-las para as filmar, como bem se compreenderá. Era indispensável vê-las de vários ângulos , inclusive rodá-las num expositor rotativo do próprio Grémio. Na primeira noite chegou um funcionário munido das chaves, mas também de uma condição que nos impunha que se não tirasse uma peça da vitrine , sem antes guardar a precedente. Concordámos, como era óbvio, e porque não tínhamos outro remédio. Mas uma coisa é concordar e outra poder cumprir.
Muitas vezes tirávamos uma peça que tinha ficar à espera que mudássemos a iluminação do momento, enquanto se filmava outro. A dada altura já havia algumas peças esperando sobre as mesas, a sua altura de entrar em cena , sob o olhar aflito do pobre funcionário receoso da visita de algum dos patrões.
Falei atrás dos polícias, e acho necessário falar da melindrosa missão que lhes fora cometida. A partir do fecho da Exp., às onze da noite, descontraíam-se, e
em mangas de camisa iniciavam umas intermináveis partidas de cartas só
interrompidas pelos abundantes copos de água, do dormitar e do resfolegar com calor. Até que tomaram uma grande medida: foram-se aos alarmes que estavam ligados à Esquadra, e desligaram-nos. Assim, já puderam abrir de
par em par as amplas e altas janelas ogivais daquele rés-do-chão de uma escura e deserta da cidade do Porto que “guardava” uma riqueza de valor patrimonial incalculável . Também o funcionário que depois de ter estado ali até às sete da manhã, ainda tinha de ir ocupar o seu lugar habitual no Grémio, na segunda noite diz-nos : "eu já vi que os senhores são pessoas sérias, por favor fiquem com as chaves e de manhã não se vão embora antes de eu chegar, que eu venho arrumar tudo." E assim ficou simplificado o nosso trabalho, tirávamos as peças e depois não atinávamos com a arrumação e ali ficavam fora das vitrines é certo , mas postas com cuidado sobre as mesas. As
mais pesadas ficavam no chão . Das mesas poderiam cair, e assim sempre ficavam mais seguras. Entre estas estava a mais preciosa jóia, ali exposta, essa sim , de valor histórico e patrimonial , não mensurável: a Custódia de Belém .
E ali estava ela, esplendorosa e indefesa, sobre o soalho, de uma casa de janelas abertas e alarmes desligados, à guarda de dois polícias sonolentos, entregue a três desconhecidos , entre eles um "marginal". Uma perfeita inconsciência . A Custódia, se roubada , por inegociável seria certamente desmontada , fundida, enfim. Irrecuperável . E, penso agora à distância de cinquenta e sete anos, em como estávamos atrasados naquelas décadas de 50 do passado Século. Numa coisa progredimos desde então: na criminalidade especializada. Se já existisse "know- how" actual, a Custódia teria feito apenas 443 anos. E dessa obra-prima do poli –facetado Gil Vicente, ou do Mestre de Balança da Casa da Moeda, ao que parece também ambos ourives. Mas enfim, Da Vinci também teve obras notáveis em vários sectores da Ciência e das Artes., a Custódia seria apenas uma recordação tristemente comemorada,. . . se ainda fosse.!
Quero deixar aqui uma nota positiva: passados alguns anos encontrei num paquete dos que faziam a ligação Metrópole-Colónias o meu patrício de Alfama, ex-marginal. Era praticante de piloto a bordo dos navios da Companhia Nacional de Navegação.
Tinha dado a volta por cima...
Era de Alfama.
Muitas vezes tirávamos uma peça que tinha ficar à espera que mudássemos a iluminação do momento, enquanto se filmava outro. A dada altura já havia algumas peças esperando sobre as mesas, a sua altura de entrar em cena , sob o olhar aflito do pobre funcionário receoso da visita de algum dos patrões.
Falei atrás dos polícias, e acho necessário falar da melindrosa missão que lhes fora cometida. A partir do fecho da Exp., às onze da noite, descontraíam-se, e
em mangas de camisa iniciavam umas intermináveis partidas de cartas só
interrompidas pelos abundantes copos de água, do dormitar e do resfolegar com calor. Até que tomaram uma grande medida: foram-se aos alarmes que estavam ligados à Esquadra, e desligaram-nos. Assim, já puderam abrir de
par em par as amplas e altas janelas ogivais daquele rés-do-chão de uma escura e deserta da cidade do Porto que “guardava” uma riqueza de valor patrimonial incalculável . Também o funcionário que depois de ter estado ali até às sete da manhã, ainda tinha de ir ocupar o seu lugar habitual no Grémio, na segunda noite diz-nos : "eu já vi que os senhores são pessoas sérias, por favor fiquem com as chaves e de manhã não se vão embora antes de eu chegar, que eu venho arrumar tudo." E assim ficou simplificado o nosso trabalho, tirávamos as peças e depois não atinávamos com a arrumação e ali ficavam fora das vitrines é certo , mas postas com cuidado sobre as mesas. As
mais pesadas ficavam no chão . Das mesas poderiam cair, e assim sempre ficavam mais seguras. Entre estas estava a mais preciosa jóia, ali exposta, essa sim , de valor histórico e patrimonial , não mensurável: a Custódia de Belém .
E ali estava ela, esplendorosa e indefesa, sobre o soalho, de uma casa de janelas abertas e alarmes desligados, à guarda de dois polícias sonolentos, entregue a três desconhecidos , entre eles um "marginal". Uma perfeita inconsciência . A Custódia, se roubada , por inegociável seria certamente desmontada , fundida, enfim. Irrecuperável . E, penso agora à distância de cinquenta e sete anos, em como estávamos atrasados naquelas décadas de 50 do passado Século. Numa coisa progredimos desde então: na criminalidade especializada. Se já existisse "know- how" actual, a Custódia teria feito apenas 443 anos. E dessa obra-prima do poli –facetado Gil Vicente, ou do Mestre de Balança da Casa da Moeda, ao que parece também ambos ourives. Mas enfim, Da Vinci também teve obras notáveis em vários sectores da Ciência e das Artes., a Custódia seria apenas uma recordação tristemente comemorada,. . . se ainda fosse.!
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Tinha dado a volta por cima...
Era de Alfama.
1 Comments:
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