A Santusa e a mão de vaca
Ano de 1932. Tinha dezasseis anos e era o mais novo dos empregados do Cinema Tivoli. Entre os meus colegas de trabalho, todos mais velhos, um Casal, a Adelaide e o Santos, de trinta e poucos anos, eram quem tinha mais paciência para ouvir as minhas conversas de adolescente, e eu. . .as deles. Invariavelmente, no fim do espectáculo, de regresso a nossas casas, percorríamos juntos uma parte do caminho que era comum,. Foi durante uma dessas caminhadas que o Santos se referiu ao Padrasto que tinha uma filha, de anterior casamento.. A moça seria mais ou menos de minha idade, e chamava-se Santusa.. Fiquei espantado com tão raro nome, que não ouvia desde os bancos da Escola onde, quatro anos atrás, acabara a Instrução Primária, e a minha Carreira Académica. Frequentara a mesma Escola, a mesma classe e a mesma Sala de aula. ( (então ainda o ensino era comum) a mais linda mocinha que os nossos olhos de criança jamais haviam visto, chamava-se...Santusa, e era a musa inspiradora dos nossos sonhos infantis; nem sempre tão infantis como isso. Mas, pareceu-me inverosímil, que no curto espaço de quatro anos, viesse a conhecer duas pessoas com um tão estranho nome, que nunca ouvira antes, nem voltaria a ouvir por mais de setenta anos,(mas isso, eu ainda não sabia). Teria a minha idade. Depois de o Santos ter feito o retrato falado, não tive mais dúvidas. Só podia ser a Santusa, a "única” Foi então que o meu Amigo Santos prometeu levar-me a jantar a casa dos Pais e... da Santusa. Esperei ansiosamente, um Século de meia dúzia de dias, e lá fomos até ao Poço do Borratem. Entrei meio canhestro, sem saber o que dizer nem para onde olhar. Mas logo a vi. Era ela com mais quatro anos, linda como antes, mas mulher aos dezasseis anos, e eu sentindo-me como no tempo da Escola, quando pela última vez nos víramos.. E percebi então que, para ela, a memória dessa remota data já se havia perdido, e junto com ela a lembrança do garoto que eu tinha sido e que, de certo modo ainda era, pelo menos na estatura. O olhar que ela me deitou, ou por outra, que passeou pela sala, passou através de min e perdeu-se sem sequer deixar um pouco de calor daqueles lindos olhos verdes e frios, que não podiam dar o que não tinham. Mas isso só mais tarde percebi.. Frustrada a perspectiva de uma conversa desfiando recordações da infância, restavam os cumprimentos da praxe, e a delicada inquirição sobre o que fazia , se gostava do emprego, enfim a conversa arrastava-se entre: ”ontem esteve muito frio”– “mas hoje, está melhor” banalidades que se dizem quando não se sabe que dizer. Para boa compreensão do que se segue, devo esclarecer que os Pais do Santos eram velhos com um ar muito conservador, formal. Nisto veio o jantar: uma enorme travessa de. . .horror: MÃO DE VACA!?. nunca em vida minha fora capaz de olhar sequer, quanto mais comer aquela coisa gorda, viscosa que devia escorregar nos dentes (suponho). De três calamidades da cozinha portuguesa: mãosinhas de carneiro, cabeça de porco e mão de vaca, é esta última, a que mais me repugna (os apreciadores que me perdoem) Não comera antes, nunca até hoje comi, nunca até ao dia final da minha vida comerei e. . .não comi naquela noite. Como sabia que, mal metesse um pedacinho "daquilo" na boca regurgitaria as refeições dos últimos três dias, disse na voz mais sumida que me lembro de ter falado: "desculpem mas não gosto de mão de vaca." Soube mais tarde – que NUNCA se deve dizer não gosto, de algo que nos oferecem. Tira-se um bocadinho, vão-se engrolando as palavras. Toda a gente percebe, mas faz de conta. Mas eu tinha quinze anos, a inocência e a franqueza de dizer aquilo que ainda não sabia esconder. Todos me fuzilaram com os olhos, mas eu só via uns lindos olhos verdes que parecia, destilarem verdete. Tirei os olhos, - e o sentido - da Santusa. Antes nunca a tivesse reencontrado. Aqueles olhos verdes e frios passavam por sobre mim sem me ver, nguém disse nada, ninguém me ofereceu um ovo estrelado, uma omelete, nada de silnciosonada. Ignoraram-me, simplesmente. Foi um jantar – para quem foi – soturno e silencioso. E ali estive durante todo o tempo, sentado à direita da dona da casa, hirto, paralisado, sem saber sequer onde pôr as mãos. Ninguém reparou mais em mim. Vi, durante o ”Século” que durou o jantar, como toda a gente se deliciava e babava sorvendo aquela coisa gorda e gelatinosa. Procurava não ver. Mal desviava os olhos de um, que logo a vista me traía caindo sobre outro. E o jantar acabou a topo, nem sobremesa, nem café, nada, só silêncio e apertos de mão e um aperto no meu coração. Porque é que no mesmo dia me havia de acontecer a Santusa e a mão de vaca!?. . .
2 Comments:
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