terça-feira, maio 23, 2006

Eram assim os velórios

... nos Bairros pobres em casa de gente mais pobre ainda. Casa pequena, família grande com muitos filhos, dois entre os dezoito e os vinte e poucos anos, duas filhas entre os oito e os doze, e um bébé de dois anos. É por este o velório, na idade em que mais se morre em casa. Os velhos vão morrer ao hospital, e de lá partem. A casa já ficou longe, talvez a meses de saudade e dor. Mas as crianças não, morrem em casa quase sempre da mesma doença, ou com a mesma causa, mais ou menos remota: a fome. A deles e a dos pais. A fome acomula-se, herda-se com o nome. Ao cimo da escada estreita, apenas dois comodos mais a cozinha para cinco pessoas. A mais velha já se arrumou, foi-se embora e a outra partirá amanhã de manhã. Por enquanto está aqui no seu último berço: branco sobre a brancura do lençol que cobre a mesa da cozinha. A essa possível. A noite chega e a casa enche-se de gente. É da tradição. Parecia mal não ir. Não é uma festa, mas um acontecimento, um encontro que começa choroso e compungido mas que dentro em pouco se irá transformando em local de conversas ruidosas, de tempo a tempo interrompidas por um" Chiiu"! de efémero resultado. A cozinha está cheia de homens que conversam. Todos em volta da essa, as paredes da cozinha são logo atrás e obrigam a isso.
O Pai da família está sentado ao topo da mesa. Conversa como todos os outros, mas tem obrigações de hospitalidade que não esquece. "Temos de tomar qualquer coisa" diiz. Levanta o lençol da "essa" e tira debaixo da mesa da cozinha um garafão e copos. Não chegam para todos; não faz mal, revezam-se. Saem para fumar. O irmão mais velho, dezassete/dezoito anos, entra acompanhado de algumas jóvens. Sentam-se à volta da essa. A exiguidade da casa o impõe. Uma das moças alvitra: "Vamos jogar às prendas" E jogam: e a prenda vai saindo e os "castigos" também. "Que castigo se dará ?". . . e o irmão mais velho: "dar um beijinho ao defunto." Não sei se o jogo continuou, não vi mais. As mulheres estão à parte, no quarto com a Mãe. Juntam-se à volta da cama, sentam-se nela, conversam. Escutei espantado uma conversa entre duas. Dizia uma: "A vizinha não calcula a minha aflição. O meu defunto marido deu em me aparecer" Oh! que horror! "É verdade, e calcule que teima em aparecer aos pés da cama e eu e o meu homem, às vezes estamos... , bem a vizinha sabe" - Ai mas parece impossível!? - "Pois é, a vizinha não m'acradita, mas ele às vezes até faz-vida comigo. Eu fico pr'a morrer, vizinha. Se o meu homem acorda!? e a vizinha apavorada: "ai mas q'horror". Assim eram os Velórios nos Bairros pobres.
Visto e ouvido em: Escadinhas de D.Rosa, Alfama, 1936. ( antes de "Dª Flor e os seus dois maridos " Jorge Amado).


* Essa: Estrado onde se colocam os caixões dos defuntos.