sábado, abril 15, 2006

O Tenor e as circunstâncias


Em 1936 rodou-se na Tobis em Lisboa o filme Bocage realizado por Leitão de Barros, e cujas filmagens foram prenhes de "casos", ou não tivesse tido, o filme, oito meses de gestação. Já contei alguns, e vou recordar um outro cuja origem se prende com a participação do, tenor Tomás Alcaide. A sua actuação iria ter como cenário os jardins do Palácio de Queluz e estava marcado para dois dias após a chegada do Tenor que vivia no estrangeiro. Seriam filmagens difíceis, implicando muita figuração e muitos meios técnicos, dos poucos de que nessa época dispúnhamos. Mas Tomás Alcaide só chegou na véspera quase à noite num avião que foi aterrar a... Évora. Com centenas de figurantes convocados, com toda a logística a postos, com tudo o que isso comporta de esforço, trabalho e organização, que só quem é do “ofício” pode avaliar. Não era possível adiar as filmagens. Por isso, nessa mesma noite, ensaiaram a canção cuja música o cantor aprendeu rapidamente, mas o poema não. No dia seguinte, maquilhado, vestido com o rico traje da corte; em pé num barco, exibindo um violino que não sabia tocar, iria cantar, ao ritmo da música aprendida na véspera, uma canção que também não sabia, Daí a necessidade de um "ponto." O barco do cantor estava ligado por duas tábuas com cerca de dois metros a um outro que transportava a câmara, o Operador e o Realizador. Terá sido ideia de algum dos assistentes, se não, do próprio Leitão de Barros, mas logo se pôs em prática. A ideia era deitar alguém sobre uma das tábuas para "pontar" a letra. Tinha de ser alguém muito leve e que soubesse a canção. Todos apontaram para o "claquete-boy" com os seus modestos cinquenta e poucos quilos, e lá fui eu. deitado de costas para ficar fora de campo, ia dizendo: "O Amor é cego e vê...não sei porquê", e o cantor repetia: " O Amor é cego e vê"... etc.etc. dando arcadas no violino ao ritmo da música aprendida em poucos minutos na noite anterior. Depois o ponto dizia o verso seguinte que ele repetia, e assim sucessivamente até ao fim, que só chegou quando o Leitão de Barros entendeu. Lembro-me que foi cansativo, e divertido para os meus vinte anos, como foram de paixão todos os momentos em que respirei a atmosfera de amianto do Estúdio da Tobis. Que me seja perdoado o devaneio. Finalmente, depois de o cantor ter gravado em Estúdio o som da canção, ficou uma cena muito romântica num belo cenário natural como era pretendido.

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Um outro caso, este mais sério –ou menos – ouvi-o da boca de Leitão de Barros. . . . treze anos depois, durante as filmagens de "Vendaval Maravilhoso" de que fui operador. Passo a contar:
O "Bocage" foi filmado numa versão portuguêsa e outra espanhola, cujo título era "Las Três Grácias . " O Produtor desta versão era um homem já muito entrado em anos, D.Ernesto (?)não me recordo do apelido. Pois queria ele que Tomás Alcaide cantasse em espanhol a mesma canção, mas achava que não devia pagar mais nada por isso. Naturalmente T.A.. quis ser pago por mais esse trabalho. As conversações foram difíceis e a dada altura, Don. Ernesto diz:" Bueno, se lo pido a Miguel.". E tantas vezes repetiu esta frase durante as conversas que Tomás Alcaide acabou por perguntar: " quem é esse Miguel. ?" Responde Don Ernesto: " é meu primo Fleta,
Miguel Fleta era o tenor espanhol, na altura rival de Alcaide por essa Europa onde ambos se,
haviam fixado, ,e a última coisa que ambos desejariam era um confronto directo, para mais com a mesma canção. Tomaz Alcaide acabou cedendo e D. Ernesto levou a sua àvante, por obra de uma "pequena" mentira –haverá "pequenas" Se as há esta não foi com certeza: O "Migué" não era nada primo dele.

---xXx---

O "ante princípio" do Bocage foi muito curioso. O Actor escolhido para interpretar o papel do poeta, fora Estêvão Amarante, célebre actor de Comédia. Era uma pessoa sobre o forte, cara redonda, e quanto me lembro, aparentando mais do que os quarenta e sete anos que na altura tinha. Ora segundo uma gravura da época, e tal como era tradição, o Poeta tinha "Carão esquálido, nariz grande,......." Foi esta gravura que foi dadaao maquilleur, o Olec, um alemão muito competente (já vinha do "Trevo de Quatro Folhas" de Chianca de Garcia,que foi um triste fracasso ) . Tudo iria depender dele e realmente aquando das provas, o Amarante parecia magro e esquálido, mas visto apenas sob um determinado ângulo. perfeito para teatro mas não para l Cinema, como se compreende Foi então escolhido o Actor Raul de Carvalho, homem de porte atlético, rosto simpático de galã. Era um bom actor do Teatro Nacional D. Maria. Com ele tudo deu uma volta de 180º. O Poeta deixou de ter o Carão ezquálido e grande nariz e ar enfermiço. para se tranformar num altleta, quase brigão. O Poeta Caldas que o diga. A maquillge passou a realçar as feições sadias do Raul. O poeta tinha gestos largos e possantes e uma gargalhada estentórica. Tudo contrário à inútil e melancólica gravura que da parede da maquillage parecia dizer: que belo seria eu no Século XX ." Mas ao contrário do que a gravura "pensa", neste Século, muita coisa igual, ou pior subsiste. A Censura estava com os olhos vesgos na fita. Alguns dos versos do Poeta só tetrão passado, creio eu, por influência do próprio Leitão de Barros.
Mas recordo um cartaz quase em tamanho natural, representando o poeta em traje negro sobre fundo branco. Bocage ´representado num gesto eufórico como que executando um salto, com um braço levantado e empunhando o chapéu. Por baixo da figura, em letras muito grandes uma só palçavra: BOCAGE. que assossiada à figura, mais parecia LIBERDADE. Foram mandados arrancar das paredes. E agora por falar em Liberdade. O brasileiro Poeta Caldas interpretado primorosamente por Joaquim Prata, finava-se de medo do Bocage. Quando este foi preso, o Caldas procura o Intendent Pina Manique, Chefe das Polícias,. e pede-lhe que solte oBocage. E argumenta: "Os poetas precisam de liberdade. Muita liberdade, os potas são como os pássaros!" E o Pina Manique: " Eles são mas é doidos!" e soltou o Manuel Maria. Havia de ser neste hoje de
quase cinquenta anos.


Se a memória me ajudar vou reproduzir uns versos e uma canção do filme, ambos da autoriado Poeta e ditos e cantada pelo Raul de Carvalho. A cena era o Salão de "Alcipe" nome com que a Marqueza de Alorna assinava o seus poemas que eram do género: "As mulheres nos Salões/ são como as flores simples e belas. Trazem mel nos corações/ e há sempre abelhas à volta delas. / Túlipas caras e jacintos d’oiro...etc etc.. Estes versos, da própria Alcipe, marcam o tipo de poesia dita naqueles Saraus. Bocage assistia enjoado, quando veio daquelas Damas o pedido. “senhor Bocage, diga-nos... ( tenho de interromper aqui porque por estranha coincidência, neste preciso momento – meia noite e meia hora de 6 de Abril de 2006 – Carlos do Carmo canta versos de Bocage - não sei dizer o que senti ). Voltando ao filme: diziam as Damas, "senhor Bocage ,diga-nos uns versos" . E o Poeta com voz forte e desafiadora: Ah! Querem versos? Pois aí vão:

"Cruzei o Mar ingrato e a Terra dura.
E nela! e nele! por toda a parte vi
que sempre a vã Fortuna aos maus sorri
e sempre aos bons assiste a Desventura.
Respeita-se a Riqueza mais impura
cuja insolência vil, nunca servi !
E quando a hipocrisia têm por si,
pôe-se virtude em toda a criatura.
Ah! Sociedade torpe e mentirosa,
quem nasce livre, independente e amante ,
sofre-te a justiça impiedosa,
mais que ninguém aos fados é constante,

e pra servir uma existência odiosa
tem de morrer de nojo a cada instante.

--yYy---

Preso na cadeia do Limoeiro canta esta canção romântica

Nesta Prisão
que o Amor cruel me deu
O coração
Mais preso está do que eu.
Anália o tem,
nas graças do seu olhar
E desse Bem,
nunca o poderei soltar.
Para matar.
duma vez toda alegria,
Basta roubar,
nossa Liberdade um dia.
Ai que saudade
eu tenho de andar na rua
ai Liberdade
qum a tem chama-lhe sua!

---xXx---

Dá um salto para o gradão de onde se vê a rua, e descreve e comenta o que se passa por lá.

Ao ver-me preso entre as grades
todo meu ser se revolta
ao pensar que andam à solta
tantos cães e tantos frades.
Não se avistam as beldades
só passam homens aos cachos
altos, magros, gordos, baixos
e as moças atrás das frestas
parece a Feira das bestas,
na rua só andam machos.

Passam aos gritos e aos ais
à procura das mulheres
os cadetes e os alferes
do Regimento do Cais.
Mas daqui eu peço aos pais
das raparigas mais belas
não lhes fechem as janelas
nem as prendam no saguão.
Metam-nas nesta Prisão
que eu cá me entendo com Elas.

--- engraçada esta "Opereta" Bocage no Ano da Graça de 1936
15/Abril/2006

3 Comments:

Blogger joão silva said...

Obrigasdo Oh! RèGiSídio. Suponho ser esta
a origem da sigla r.g.s. Agradou-me Real
e Gostosa, i.é. Saborosamente. O ReGisto
Seriamente - Revelador do Genuíno Sentimento, Repetidamente ficantecarinho que nos liga: Recíproco, Generoso, e Solidário. Um abraço.

9:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

As suas histórias são realmente deliciosas. Ainda bem que encontraram este blogue para mim (O Tio Pedro Alvarenga, honras lhe sejam feitas!) Conte mais, por favor, conte mais! Já tem pelo menos uma fã que aguarda uma pausa no trabalho, e no corrupio que é a vida, para vir a este sítio ler uma história. Obrigada, Ana Silva Coelho

2:20 da manhã  
Blogger Luiz Carvalho said...

Grande surpresa para mim. Já tinha ouvido falar do João Silva agora este blog é fabuloso.

Vou propor uma entrevista para o Expresso.

1:58 da manhã  

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