sábado, abril 15, 2006

O Baptizado que o não foi e o Pároco que não devia tê-lo sido

Nas décadas de 50 e 60 viveu em Luanda um casal muito simpático, o Sr. Almeida e a esposa que era a Actriz já retirada Zeca Fernandes, uma Mulher muito bonita a pesar dos anos decorridos até à data a que me reporto. Éramos vizinhos e visitas recíprocas. Aquela família tinha um motorista e uma lavadeira, marido e mulher que moravam nos anexos da casa. Tinham um bébé com cerca de um ano quando a mãe o deixou com o pai, e nunca mais apareceu. O pobre pai aflito não sabia o que fazer à vida e à criança e foi então que a Zéca Fernandes resolveu tomar conta do bébée e criá-lo como filho. O garoto era muito bonito e esperto, e a “madrinha” ensinou-o a cumprimentar as visitas com muito boas maneiras. Tinha o mocinho talvez uns quatro anos quando andava a brincar aos cow-boys com o meu filho ligeiramente mais velho. Assisti então a uma cena que me deixou uma marca tão grande que, passados mais de cinquenta anos, ainda me causa uma mágua e mesmo vergonha. Os garotos perseguiam-se aos "tiros" e o meu filho, fugia e o mocinho perseguia-o gritando: " é pá ! é pá ! " Nisto, o perseguid0 resolve enfrentar o perseguidor e volta-se para trás gritando também. "É pá o quê ! é pá o quê ! o pequeno estcou, cala-se por um momento, e com uma vòzita tímida, diz muito a medo: "Menino !?" Já não brincou mais e eu não soube o que fazer. Mas soube muito bem perceber o que andámos nós a fazer durante séculos. Estou a escrever às onze horas da noite de catorze de Abril de 2006, isto é: cinquenta e dois anos depois, e ainda tenho nos olhos aquele pequenino rosto, aqueles olhos tristes que numa fracção de segundo passaram da alegria e da confiança, para a tristeza e a desilusão. Por aqueles olhos magoados de criança passaram quinhentos anos. de sublissão. E eu, queira ou não, fiz parte deles.

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A Zeca Fernandes resolveu baptizar a criança e o baptizado foi marcado para a Igreja do Carmo, mesmo no centro de Luanda, frente à Câmara Municipal. O pároco, Padre Martins era um homem novo muito desembaraçado e bem falante. A Madrinha do garoto tinha-me pedido para fazer umas fotografias do acontecimento. Acedi com gosto na minha dupla qualidade de profissional e de Amigo.

Quando entrei na Igreja para me orientar num local que ainda não conhecia, eis que o padre Martins pretende impedir-me de trabalhar a pretexto de um acordo que tinha com outro fotógrafo que teria o exclusivo de fotografar na sua igreja, Percebi imediatamente que ali havia negociata. Mais tarde tive a confirmação do meu colega a quem inquiri. No entanto, recusei-me a sair da igreja exibindo a Carteira Profissional, e fiquei à espera do "Baptizado que o não foi."
É que no início da cerimónia aparece a mãe da criança que abandonara quatro ou cinco anos antes, invocando a sua qualidade de mãe e fazendo escândalo, mostrando que estava separada e que não eram casados mas apenas juntos. Foi a ocasião para "o pároco que o não devia ter sido" mostrar o seu fanatismo, crueldade, estupidez; pois se o menino viesse a morrer "não batizado" não teria, segundo o seu credo, direito a entrar no Ceu e vogaria no Limbo por toda a eternidade. Não sou crente. Provavelmente também o não é o padre Martins. Mas foi... é um ser desprezível.

Todas as medalhas têm duas faces:
Passado algum tempo o motorista resolve voltar para a sua terra e levar a criança. Quando se fo despedir dos patrões pediu-lhes mata-bicho. Perante a admiração destes, usou o seu “argumento.” “Então, a Senhora teve o menino em casa todo o tempo”. Parece incrível...mas não é tanto assim. Os negros estavam habituados a que os brancos se servissem deles e não o contrário. Logo: se a Senhora teve lá o menino, só pode ter sido para se servir dele. Portanto... “mata-bicho” Paradoxal. A Senhora, a Zéca, deu e “recebeu” daquela pequena alma, frágil, sozinha e indefesa todo o carinho, toda a ternura que já teria dado a netos. Mas na ideia do pai, “Só” recebeu.
15/04/006- 05.30 H.