segunda-feira, março 20, 2006

No Centro de Saúde de Sacavém

Pouco tempo após a Independência de Angola, foi trocada a moeda, de Escudos para Kuanzas. Esta operação que se esperaria complicada, demorada e até tumultuosa, decorreu na maior tranquilidade e terminou em poucos dias. Como foi isto possível? Com inteligência, competência e organização. Algum tempo antes, tinham sido afixados grandes cartazes nas lojas que, nos vários bairros, haviam sido abandonadas pelos proprietários. Esses cartazes, informavam que em breve abririam para retomar a actividade.
Na véspera do dia marcado para a troca, foram os funcionários do Banco de Angola e, de vários serviços públicos, concentrados neste Banco onde receberam instruções sobre a tarefa que os esperava e de onde sairiam só no dia seguinte a caminho dos seus locais de trabalho. Foram fechados os Portos e Aeroportos. Ninguém entrava nem saía do País. Não havia operações bancárias. A Rádio e a Televisão, anunciavam insistentemente que, no dia seguinte, seria efectuada a troca da moeda, dando instruções sobre o procedimento a seguir. Assim, cada um deveria dirigir-se à loja do seu Bairro, antes fechada, e que agora ostentava o cartaz : “Troca de Moeda”. Poderia levar Escudos até ao valor de vinte contos que seriam trocados por igual quantia em Kuanzas. Do que fosse além desse valor, seria passado recibo. Quanto às contas bancárias, seriam automaticamente cambiadas pelo próprio Banco.

Formaram–se filas demasiado longas para serem atendidas no próprio dia. A operação iria ser mais ou menos demorada, consoante a experiência anterior dos “caixas”. Mas, com paciência, as filas lá foram encurtando pouco a pouco, e para surpresa de todos, quando se aproximava o fim do dia, foram distribuídas senhas numeradas, pelas pessoas que restavam. No dia seguinte teriam prioridade. Achei uma medida muito positiva.
Mas agora estou perplexo com a minha tão estranha confusão. Porque me teria eu metido por um caminho tão diferente daquele que, à partida, me propusera trilhar? Porém, algo neste relato me terá trazido um lampejo de memória. Agora me lembro! Foi o episódio das senhas para o dia seguinte. Mea Culpa! Vou pois remeter-me ao assunto que o título indicia. Procurarei ser breve. Referir-me-ei ao Posto de Saúde de Sacavém Todos os utentes deste Posto estamos em igualdade de circunstâncias, todos recebemos os mesmos cuidados médicos, todos sofremos com a burocracia, todos somos ignorados pelas entidades dirigentes, que ouvem falar de nós, mas nunca nos viram e que, permito-me pensar, nem nisso estarão interessadas. Desse distanciamento resulta alguma incoerência. Por um lado, o médico a tentar curar-nos, por outro, a burocracia a impedir que isso aconteça.
Eis um caso paradigmático: O médico de família prescreve Fisioterapia e passa uma credencial para a respectiva Clínica. No caso a da Bobadela, a cinco minutos de carro. Parece que essa credencial seria válida. Não. Tem de ir a Lisboa para validar, (menosprezo pelo médico? De certo que não.) Mas a omnipresente burocracia, personificada nos senhores de que acima falei, e que adoram ver num documento que não leram, a sua assinatura, chancela ou “jamegão” (já meus conhecidos de Angola) esses sim; esses são os responsáveis pelo emperrar da “máquina” e pela espera do retorno da credencial dentro de... oito a dez dias, protelando o início dos tratamentos, e prolongando o sofrimento de quem deles precisa.

Porém este atraso, ainda é o menor dos males. Basta suportar as dores por mais esses penosos dias. Mas no fim da primeira série de quinze tratamentos, já a coisa se apresenta de forma diferente. Vejamos: o Fisiatra prescreve mais uma série de quinze sessões. Leva-se o documento ao médico de família. O tempo de espera pela consulta depende das vezes que se tiver de ir para a fila e apanhar ou não ficha de inscrição, ou uma das poucas senhas de que o médico dispõe. Sejamos optimistas, aceitemos 3 dias. O médico passa nova credencial, espera-se a sua volta de Lisboa, (os tais 8 a 10 dias). Na Clínica: 2 a 3 dias. Total da interrupção entre a primeira e segunda séries: 13 a 16 dias. Tempo mais do que suficiente para que se perca o efeito dos exercícios anteriores, sabido que, bastam quarenta e oito horas de intervalo entre um exercício e o seguinte para que todo o benefício se perca.

E agora, espero que me seja perdoado citar o meu caso pessoal, faço-o por ser paradigmático, pois como disse atrás: “ todos nós, para o bem e para o mal, recebemos os mesmos cuidados”. Três sessões de quinze tratamentos cada, espaçadas de quinze dias entre si, pelos tempos de espera, totalizam três meses, isto é, o dobro do tempo necessário, e sem melhoras sensíveis Admito que se os não tivesse feito, poderia ter piorado. Fraco consolo. Face a isto, o médico de família resolveu dar outro rumo ao caso, enviando o paciente (na verdadeira acepção da palavra) para uma especialidade.

Meados de Agosto; férias da Clínica de Neuro–Cirurgia (demora extra, ninguém tem culpa). As consultas e os exames estendem-se até princípio de Outubro. Finalmente tenho nas mãos os relatórios que me apresso a levar ao médico de família. Confesso que não fui tão lesto como quem chega às cinco da manhã, a tempo de arranjar lugar num dos dois generosos bancos que acolhem oito das muitas dezenas de pacientes. A minha desculpa, se desculpa tenho, é que não posso estar de pé muito tempo. Assim, cheguei pouco depois das oito e meia. Coube-me a senha nº 13 (bom ou mau augúrio?). O quadro electrónico mostrava o nº 50... da série anterior –mau augúrio– tinha 63 pessoas à minha frente. Reparei que o atendimento se estava a processar à razão de oito pessoas em cada quarto de hora -bom augúrio. A continuar assim, teria de esperar “só” duas horas. Resolvi esperar. O médico entrou quase logo a seguir –bom augúrio– mas, pouco depois uma voz distorcida pelo mau microfone anuncia: “Já não há consultas para o Dr...“ –péssimo augúrio- era o meu médico. o que tinha entrado pouco antes. Sabendo por experiência, que o Dr. vinha cá fora por volta das dez e meia e trazia umas quantas senhas que davam acesso à consulta, fiquei à espera. Assim foi, o Dr.... veio e, muito logicamente foi entregando as senhas a quem tinha os números mais baixos. Não tive sorte, o nº 13 não funcionara para o meu lado. Trazia comigo a carga de exames que havia sido pedida por aquele médico em Agosto. Estávamos nos primeiros dias de Outubro. Trazia também uma carga de dores que me obrigavam a curvar a coluna. Penosamente, arrastei-me até ao “meu médico” com a intenção de, pelo menos, lhe entregar os “exames”. E, confesso que a minha dignidade sofreu um golpe doloroso: curvado como um velho - que sou- e com o “auxílio das dores, mais parecendo um mendigo rogando uma esmola, balbuciei umas palavras, que ele cortou cerce: “Já não tenho mais senhas, volte noutro dia”. Não reconheci naquela secura o médico atencioso, preocupado e simpático de ocasiões anteriores. Não podendo lutar contra a rigidez daquelas regras, dirigi-me à recepção, para me inscrever, no tal “outro dia”. “Que não senhor, as inscrições eram só para o próprio dia. ”Perguntei: “então, e se vier e novamente não obtiver consulta?” “Então venha noutro dia”. E assim seria sabe–se lá por quanto mais tempo. E quando perguntadas pela razão dessa regra, as pobres funcionárias não tem poder para mais do que encolher os ombros e dizer “então, é assim.”

Mas os médicos deveriam ter força e coragem para defender os seus doentes dos administradores, directores etc, que eventualmente terão sido médicos, mas ascenderam a posições mais cómodas e burocráticas. A indiferença perante esta coisa tão simples como a distribuição de senhas que, em parte evitaria a longa espera e o sofrimento de tanta gente, velha na sua maioria. O médico que ouve com toda atenção as queixas e os lamentos dos seus doentes a quem procura minorar os males não pode, não deve esquecer-se de que a pessoa de cujos males cuidou, continua a existir para lá da porta do seu gabinete; que esteve e estará outra vez –se outra vez houver- ao frio e à chuva durante horas, para conseguir (ou não) uma senha de consulta, tornando pouco menos que inútil a medicação prescrita. Então, porque não distribuir senhas para evitar estes males? Exames feitos há mais de um mês ainda não puderam ser presentes ao médico. Entretanto fiquei sabendo que se podem marcar consultas. pelo telefone. Haja enfim algo de positivo. Satisfeito com o facto e pela facilidade que ele representa, telefonei hoje, dia seis de Outubro, e perguntei à funcionária: “posso marcar consulta para o Dr...?” e a funcionária, aliás muito simpaticamente, responde-me, sim senhor, fica marcada para o dia 8 ...de Novembro. Assim, após dois meses e meio, vou ter, terei(?) a inefável dita de mostrar ao médico os quiçá, desactualizados e, por isso, imprestáveis relatórios, R X e TACs, análises. E, já agora, porque não mostrar também, todo o meu desespero como doente e toda a minha revolta como homem? Continuarei a protestar e, espero que outros o façam também.

Nota: Tenho este escrito guardado desde Novembro de 2005 hesitando sobre o destino que lhe
deveria dar - para além do o ter dado ao meu Médico - com quem conversei, e mantenho as melhores relações. Mas hoje, 20 de Março de 2006 vi na Televisão uma reportagem numa Instituição para Crianças portadoras de uma doença congénita, sem cura e creio que degenerativa que não dará mais do que trinta anos de vida. Uma Senhora dirigente da Instituição, apontou entre outras causas das dificuldades sentidas: " a indiferença e a vontade de poupar por parte do Estado" Isso me decidiu. Afinal, sempre há mais alguém a protestar.