segunda-feira, fevereiro 27, 2006

FEIRA DOS CAPÕES

e a magoada lembrança que de lá trouxe


Fui chamado ao Porto a fim de filmar a Feira dos Capões, acontecimento afamado que se realizava, creio que anualmente, em Friamunde, Vila nortenha mas de cuja localização já me não recordo. Falo da década de quarenta do Século passado, obviamente. Não vou falar da incómoda viajem desde o Porto num Fiat 500 - de que hoje, poucos se lembrarão, esmagado entre o material de trabalho e os cem quilos do Custódio Mergulháo . Náo darei grande ênfase, embora não possa deixar de referir a tão bela quanto enganadora policromia da plumagem que tanta desilusão terá provocado nas inocentes frangas desejosas de serem tornadas galinhas, terem filhos, enfim, constituir família, ainda que monoparental. Porque os ex-machos eram de facto bonitos com a sua corpulência enganadora e plumagem vistosa como montra de loja cujo vidro empresta um falso brilho ao exposto. Vai-se lá dentro e não é nada daquilo. Pois com os Capões passa-se o mesmo. O tamanho não era impeditivo de o Galo saber a galo – menos para as pobres e decepcionadas galinhas - Claro que hoje há frangos do tamanho de perus, e perus do tamanho de borregos que naquela época eram identificados pelo paladar. Hoje, se não se puser "jindungo" tudo sabe ao mesmo e o mesmo a plástico. Actualmente o frango e o peru têm o "sabor" das rações que eles comem e que não passa pela cabeça de ninguém consumir em natureza. Este foi um longo, longo intróito de que pediria desculpa a alguém que me lêsse– se alguém houvesse. Fomos colhendo imagens ao nosso gosto e, algumas eram realmente belas graças às enganadoras e multicores penas do "rabo de galo" e de cristas muito vermelhas mas não muito erectas. Nós tínhamos de estar de volta ao Porto a tempo de apanhar o comboio para Lisboa , e o Custódio já me ia apressando e eu querendo fazer mais um plano daqui, outro dali, até que o meu amigo me apontou o relógio e eu vi-o a termo de fazer um enfarte. Então, como ultimo dos últimos, pedi a um casal de idosos que estava a uma varanda bastante baixa, que me deixassem subir e lá fui. Estive na varanda o tempo indispensável para fazer o que era preciso, cinco minutos para mim, meia hora para o Mergulhão, e quando me volto para a sala para me despedir e ir embora, vejo a mesa posta com um magnífico lanche que lá não estava quando entrei. Quer dizer, tudo aquilo, toda a gentileza tinha sido em minha honra, no desejo de obsequiar o estranho que pela primeira viam; que nunca mais veriam. Senti-me o último dos vilões, Mas eu próprio sabia que estava a pôr em risco a rentabilidade do negócio, que ainda por cima não era meu. Não apanhar o comboio naquela noite para Lisboa, representava uma diária de Hotel. Então dei a desculpa da imensa pressa em que estava, mas não me podia demorar a falar porque nesse tempo poderia ter pegado num pastelinho. Mas com pastelinho ou não, sempre teria de dar desculpas. Mas os meus anfitriões, habituados a uma vida calma e lenta da Província não poderiam compreender que houvesse gente tão louca que não tivesse tempo, nem para corresponder a uma gentileza. Pedi mil perdões numa voz entaramelada, envergonhado pela noção que tinha da frustração que estava a fazer sentir àquelas pessoas que teriam pouco menos que a idade que eu tenho hoje: passados que são sessenta anos. Confrangido, abalei porta fora com a imagem – que ainda tenho na mente – dos dois velhotes com um ar desolado, olhando para mim do outro lado da mesa e eu, envergonhado, não fui capaz de dar uns minutos de satisfação e prazer àqueles dois tão simpáticos velhinhos, mesmo rrostando a justa fúria dos cem, quilos do Custódio. Não sei o que terão ficado a pensar de mim, mas eu sei o que pensei... e não foi agradável.
Desanuviando: quando chegámos junto do Fiat 500, estava um carro encostado, não deixando abrir a porta do lado do condutor. A única que tinha fechadura. O Custódio Mergulhão, fazendo honra aos seus cem quilos, agarrou no para-choques e desviou o carro para o lado. Cheguei a tempo do comboio... com uma boa meia hora de avanço.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Amigo João,
passei por aqui para lhe deixar um abraço. Encontrei esta crónica. Não posso deixar de a transcrever, no dia dos 35 anos da morte de António Silva. Como o tempo passa!!

Não encontro melhor forma de homenagear esse homem que, na minha juventude, tanto me divertiu. E que ainda me faz rir.

Um abraço
Jacinto

1:54 da manhã  

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