O Marcos Salomónico
O Marcos do Vale foi ao longo de toda a minha carreira profissional, desde "claquete boy" a
operador, o terceiro assistente de imagem, - ao tempo chamavam-se serventes - isto é o que fazia o trabalho pesado – carregar com a câmara de estúdio que andava pelos seus quarenta ou cinquenta quilos. Era um rapaz fortíssimo que subia escadas de mão com a câmara ao ombro como se nada fosse. A equipa de imagem, muitas vezes composta pelo Aquilino Mendes, operador, o Perdigão Queiroga ( antes de ser realizador), eu próprio e ainda o Marcos que por ser funcionário da Tóbis transitava de umas equipas para outras. Mas na nossa era sempre certo.Tinha uma meia dúzia de anos mais do que eu e o Queiroga que tínhamos a mesma idade. Sempre nos tratou por tu, mesmo com Perdigão Queiroga enquanto realizador. Analfabeto, ou quase, mas inteligente e com grande senso de humor, o Marcos, apesar da sua grande força era um "paz de alma." Tinha começado a trabalhar nas obras de construção do Estúdio; continuou como guarda, e a Mulher, a Felismina como empregada da limpeza. Moravam numa casa da Tobis na parte antiga da Quinta das Conchas onde estava inserido o Estúdio. Dizem que Deus não dá tudo à mesma pessoa, talvez por isso tinha ele um "pequeno senão:" bebia um "pouco" demais. Acho que era coisa de família,: o irmão mais velho - um excelente sapateiro,- era um beberrão notável ali no Lumiar. Chamava-se Armando do Vale. ( a propósito dizia Leitão de Barros: "calculem que puseram a este homem o nome do galã da “Dama das Camélias, Armand Duvalle, e sai-nos um sapateiro beberrão!") Tínhamos entre nós, na "Imagem" alguns sinais de código, por exemplo quando nos queríamos afastar para ir beber água, levantávamos o polegar apontar para cima, e se era o contrário de beber, virávamos o polegar para baixo. Um domingo filmámos cenas para o “Pai Tirano” nos Armazens Grandela. O Marcos já tinha feito várias vezes o sinal de polegar para baixo durante a manhã, até que o Queiroga lhe diz: " não vais mijar mais vez nenhuma que daqui a bocado estás bêbedo!"Após este longo intróito de apresentação do personagem, cumpre-me justificar a razão do termo “Salomónico” incluído no título. É o que passo a fazer. A dada altura começou a frequentar a casa do Marcos e da Felismina, que como já disse moravam dentro da Tobis, uma moça do Lumiar, mãe solteira, (anos 30, nesse tempo, "mãe solteira" tinha outra designação) com um bébé de colo e que lhes pedia de quando em vez para tomarem conta do filho durante umas horas enquanto procurava emprego, ou por qualquer outro motivo. Até que um dia deixou a criança e nunca mais apareceu. Levou completo sumiço. O Marcos e a Mulher continuaram com o inocente que foram criando, mesmo sabendo quem era o pai que vivia também ali para a zona saloia e que nunca procurou saber nada do filho.
Não me lembro do nome do garoto. (curioso, lembrei-me neste preciso momento, setenta anos depois, Rogério. assim se chamava o garoto) que convivia muito com todos nós. Era para todos os efeitos "o filho do Marcos." A criança completou a Instrução Primária e, como era fatal naquela idade – 12 ou 13 anos - nas classes pobres e naqueles tempos, foi aprender um ofício.
Estava naturalmente indicado que, tendo um "tio" sapateiro fosse trabalhar e aprender com ele. E assim começou a ganhar o seu – pouco – dinheirinho. Pouco era certamente, mas mesmo assim o seu "perfume" foi suficiente para chegar às narinas do pai biológico que tomado de um súbito amor paternal, vá de se apresentar aos Marcos reclamando a custódia do filho que aliás, nunca perfilhara nem sequer visitara. Aí, o"Paz d'Alma" que era Marcos, passou-se de todo do juizo e, com o filho ao lado, vira-se para o homem e diz-lhe: "Olha lá! Você vai levar o rapaz, mas antes, eu agarro nele pelas duas pernas e – fazendo um gesto largo – rasgo-o ao meio e dou-lhe com os bocados no focinho até o desfazer a ele e a você!" Perante esta Salomónica decisão o homem desapareceu prudente e definitibamente.
E a Felismina e o Marcos ficaram com o FILHO.
operador, o terceiro assistente de imagem, - ao tempo chamavam-se serventes - isto é o que fazia o trabalho pesado – carregar com a câmara de estúdio que andava pelos seus quarenta ou cinquenta quilos. Era um rapaz fortíssimo que subia escadas de mão com a câmara ao ombro como se nada fosse. A equipa de imagem, muitas vezes composta pelo Aquilino Mendes, operador, o Perdigão Queiroga ( antes de ser realizador), eu próprio e ainda o Marcos que por ser funcionário da Tóbis transitava de umas equipas para outras. Mas na nossa era sempre certo.Tinha uma meia dúzia de anos mais do que eu e o Queiroga que tínhamos a mesma idade. Sempre nos tratou por tu, mesmo com Perdigão Queiroga enquanto realizador. Analfabeto, ou quase, mas inteligente e com grande senso de humor, o Marcos, apesar da sua grande força era um "paz de alma." Tinha começado a trabalhar nas obras de construção do Estúdio; continuou como guarda, e a Mulher, a Felismina como empregada da limpeza. Moravam numa casa da Tobis na parte antiga da Quinta das Conchas onde estava inserido o Estúdio. Dizem que Deus não dá tudo à mesma pessoa, talvez por isso tinha ele um "pequeno senão:" bebia um "pouco" demais. Acho que era coisa de família,: o irmão mais velho - um excelente sapateiro,- era um beberrão notável ali no Lumiar. Chamava-se Armando do Vale. ( a propósito dizia Leitão de Barros: "calculem que puseram a este homem o nome do galã da “Dama das Camélias, Armand Duvalle, e sai-nos um sapateiro beberrão!") Tínhamos entre nós, na "Imagem" alguns sinais de código, por exemplo quando nos queríamos afastar para ir beber água, levantávamos o polegar apontar para cima, e se era o contrário de beber, virávamos o polegar para baixo. Um domingo filmámos cenas para o “Pai Tirano” nos Armazens Grandela. O Marcos já tinha feito várias vezes o sinal de polegar para baixo durante a manhã, até que o Queiroga lhe diz: " não vais mijar mais vez nenhuma que daqui a bocado estás bêbedo!"Após este longo intróito de apresentação do personagem, cumpre-me justificar a razão do termo “Salomónico” incluído no título. É o que passo a fazer. A dada altura começou a frequentar a casa do Marcos e da Felismina, que como já disse moravam dentro da Tobis, uma moça do Lumiar, mãe solteira, (anos 30, nesse tempo, "mãe solteira" tinha outra designação) com um bébé de colo e que lhes pedia de quando em vez para tomarem conta do filho durante umas horas enquanto procurava emprego, ou por qualquer outro motivo. Até que um dia deixou a criança e nunca mais apareceu. Levou completo sumiço. O Marcos e a Mulher continuaram com o inocente que foram criando, mesmo sabendo quem era o pai que vivia também ali para a zona saloia e que nunca procurou saber nada do filho.
Não me lembro do nome do garoto. (curioso, lembrei-me neste preciso momento, setenta anos depois, Rogério. assim se chamava o garoto) que convivia muito com todos nós. Era para todos os efeitos "o filho do Marcos." A criança completou a Instrução Primária e, como era fatal naquela idade – 12 ou 13 anos - nas classes pobres e naqueles tempos, foi aprender um ofício.
Estava naturalmente indicado que, tendo um "tio" sapateiro fosse trabalhar e aprender com ele. E assim começou a ganhar o seu – pouco – dinheirinho. Pouco era certamente, mas mesmo assim o seu "perfume" foi suficiente para chegar às narinas do pai biológico que tomado de um súbito amor paternal, vá de se apresentar aos Marcos reclamando a custódia do filho que aliás, nunca perfilhara nem sequer visitara. Aí, o"Paz d'Alma" que era Marcos, passou-se de todo do juizo e, com o filho ao lado, vira-se para o homem e diz-lhe: "Olha lá! Você vai levar o rapaz, mas antes, eu agarro nele pelas duas pernas e – fazendo um gesto largo – rasgo-o ao meio e dou-lhe com os bocados no focinho até o desfazer a ele e a você!" Perante esta Salomónica decisão o homem desapareceu prudente e definitibamente.
E a Felismina e o Marcos ficaram com o FILHO.
2 Comments:
Magnífica esta história. Se fosse hoje lá vinham os psicólogos, mais as instituições do ramo empatar a solução do problema.
Este episódio, à data, foi muito comentado na Tobis e em todo o Lumiar. Não só a Mãe do Rogério, já anteriormente desaparecida não reapareceu, como pai também levou sumiço. Mas o Marcos tinha um grande senso de humor. Vou dizer uma "sacanice". Ainda bem que era quase analfabeto. Se fosse licencioado perdia a expontaneidade e a pureza nas coisas que
dizia. Tenho mais dele para contar.
João Silva
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