O mistério da "Canção de Lisboa"
de Cottinelli Telmo
(O texto que se segue é produto de uma recordação perdida nas profundezas da memória desde há setenta e dois anos, e trazida ao de cima pela "Canção de Lisboa" de Felipe Laféria.)
Na vida tudo, ou quase, tem explicação. Terá? A "Canção" como carinhosamente lhe chamávamos foi rodada no Verãode1933. Era consensual entre a equipe, que a fita iria ser um êxito. E tanto foi assim na estreia como continua a ser agora, setenta e dois anos depois, na Televisão.
Alguns anos após a estreia, alguém terá sugerido o lançamento do filme com cópias novas, como se de "nova estreia" se tratasse. Cotinelli Telmo não concordou com a ideia, dizendo mesmo que só deveriam pensar nisso depois da sua morte. O tempo foi passando, outros filmes se fizeram, até que em 1948, quinze anos depois, renasceu a ideia. A Tobis tinha acabado de inaugurar o seu Laboratório e deu começo aos trabalhos necessários para a impressão de novas cópias da Canção. Neste mesmo ano estava em rodagem o "Vendaval Maravilhoso" de Leitão de Barros, e em Setembro fomos filmar algumas cenas no velho Teatro Apolo entretatnto desaparecido. Numa tarde somos surpreendidos pela notícia da morte de Cottinelli Telmo. Leitão de Barros, seu cunhado, mandou suspender os trabalhos e regressamos ao Estúdio. A notícia já tinha chegado e estavam todos tão consternados como nós. Entretanto tinha surgido no Laboratório um problema grave com a Canção de Lisboa: o negativo recusava-se a passar na máquina positivadora desde aquela manhã. Já tinham titado uma cópia mas não conseguiam resolver o problema que era o seguinte: tudo correra normalmente, os filmes, negativo e positivo juntos, iam passando na janela de impressão, até que a dada altura o negativo encarquilhava, perdia o contacto com o filme positivo, não passava na janela e a máquina parava. Não interessa por agora entrar em explicações técnicas certamente fastidiosas e dificeis de ententer por quem não é do meio. Fiquemo-nos pelo acontecimento. Acontecimento este que logo provocou grande agitação entre muita gente mais sensível... e crédula.
Porquê naquele dia 18, se os trabalhos tinham começado dias antes? Porquê precisamente naquela manhã? Lembravam a recusa do Cottinelli. Os Chefes do Laboratório, os espanhóis Portillo, pai e filho estavam perplexos e preocupados, e não se arriscavam a continuar o trabalho com receio de inutilizar o negativo, tornando definitivamente irrealizável o relançamento da "Canção" que ficaria perdida para sempre. Mas as preocupações dos Portillo não eram de ordem metafísica, e procuravam afincadamente na terrena tecnologia a cura para aquele mal. E encontraram. Agora a explicação, voltando quinze anos atrás:
Fui testemunha do que vou relatar, uma vez que trabalhei na Canção como assistente de operador. O filme negativo de imagem que se utilizava era "Gaevert", uma marca belga de boa qualidade. Simplesmente a dada altura acabou aquele filme e para não interromper as filmagens, começou a usar-se outro até à chegada de nova remessa de Gaevert. Ora é geralmente sabido que um filme não é feito por ordem cronológica, seguindo o argumento passo a passo. E até uma cena em que um actor entra ou sai hoje por uma porta, pode só aparecer do outro lado, noutro cenário oito dias depois, ou até já ter lá entrado na semana anterior. Se bem se recordam do filme, lembro a cena em que a Beatriz, numa dependência da alfaiataria, discute com o Vasco, que sai, abre uma porta e entra na casa onde estão as custurerinhas pedindo-lhes apoio e até suplicando que lhe "escovem a Alma". Os dois cenários foram implantados no mesmo local com vários dias de intervalo. Isto quer dizer que o Vasco levou vários dias para franquear a porta e portanto bem pode ter sido filmado de um lado com um filme e do outro lado com outro. Se tivesse sido utilizado sempre o mesmo negativo nada de grave teria acontecido. Porém, intercalando planos de uma marca com outros de outra, na montagem final resultavam vários metros de um negativo ligados ao outro, repetindo-se esta situação ao longo de todo o Filme. Claro que estou a falar de filmes feitos à setenta anos. Hoje as coisas são diferentes. Naquele tempo fazia-se um negativo e dele se tiravam todas as cópias para exibição. O negativo era depois arquivado e assim ficaria até que mais copias fossem necessárias. Desta feita, só o foram quinze anos depois. Tanto tempo de clausura e sem os recursos actuais, causou alterações físicas como teria acontecido também a qualquer mortal nas mesma circunstâncias. E agora, após esta longa viagem pelo nascimento da Canção de Lisboa, voltemos a 1948. Depois de muitos testes de toda a sorte, os Portillos acharam o motivo de avaria: quando se metia o negativo na Positivadora para passar a imagem para positivo, (tal e qual como uma fotografia) tudo ia bem enquanto o filme era Gaever e só quando chegava um plano filmado com a outra película, esta encarquilhava tornando impossível a sua passagem entre os "pressores" que mantinham unidos o negativo e o positivo. Depois de muitas pestanas queimadas concluíram que o filme usado como recurso, tinha perdido mais humidade do que o Gaevert e por isso encarquilhava com o calor da máquina. O recurso foi banhar o filme para aumentar a humidade e portanto a flexibilidade do nitrato de que era feito o suporte da camada fotográfica. Sei que foi um trabalho exaustivo e de uma grande delicadeza para não deitar tudo a perder. Daí para diante não houve mais problemas porque foram feitas cópias "master" de que passaram a substituir o negativo original na feitura de cópias comerciais, conservando o negativo como objecto de Museu, com toda a justiça, diga-se. Ainda recentemente se fez outro lançamento da Canção, e portanto novas cópias se fizeram, mas não do negativo original. Este é o relato do que na realidade se passou, sem mistérios, sem intervenções sobrenaturais. Houve coincidência de acontecimentos, o que pode parecer estranho. Mas se quiserem insistir noutra explicação, então eu pergunto: porque foi possível à tecnologia bastante rudimentar ao tempo, vencer esta batalha? Afinal na vida tudo tem explicação. Terá?
(O texto que se segue é produto de uma recordação perdida nas profundezas da memória desde há setenta e dois anos, e trazida ao de cima pela "Canção de Lisboa" de Felipe Laféria.)
Na vida tudo, ou quase, tem explicação. Terá? A "Canção" como carinhosamente lhe chamávamos foi rodada no Verãode1933. Era consensual entre a equipe, que a fita iria ser um êxito. E tanto foi assim na estreia como continua a ser agora, setenta e dois anos depois, na Televisão.
Alguns anos após a estreia, alguém terá sugerido o lançamento do filme com cópias novas, como se de "nova estreia" se tratasse. Cotinelli Telmo não concordou com a ideia, dizendo mesmo que só deveriam pensar nisso depois da sua morte. O tempo foi passando, outros filmes se fizeram, até que em 1948, quinze anos depois, renasceu a ideia. A Tobis tinha acabado de inaugurar o seu Laboratório e deu começo aos trabalhos necessários para a impressão de novas cópias da Canção. Neste mesmo ano estava em rodagem o "Vendaval Maravilhoso" de Leitão de Barros, e em Setembro fomos filmar algumas cenas no velho Teatro Apolo entretatnto desaparecido. Numa tarde somos surpreendidos pela notícia da morte de Cottinelli Telmo. Leitão de Barros, seu cunhado, mandou suspender os trabalhos e regressamos ao Estúdio. A notícia já tinha chegado e estavam todos tão consternados como nós. Entretanto tinha surgido no Laboratório um problema grave com a Canção de Lisboa: o negativo recusava-se a passar na máquina positivadora desde aquela manhã. Já tinham titado uma cópia mas não conseguiam resolver o problema que era o seguinte: tudo correra normalmente, os filmes, negativo e positivo juntos, iam passando na janela de impressão, até que a dada altura o negativo encarquilhava, perdia o contacto com o filme positivo, não passava na janela e a máquina parava. Não interessa por agora entrar em explicações técnicas certamente fastidiosas e dificeis de ententer por quem não é do meio. Fiquemo-nos pelo acontecimento. Acontecimento este que logo provocou grande agitação entre muita gente mais sensível... e crédula.
Porquê naquele dia 18, se os trabalhos tinham começado dias antes? Porquê precisamente naquela manhã? Lembravam a recusa do Cottinelli. Os Chefes do Laboratório, os espanhóis Portillo, pai e filho estavam perplexos e preocupados, e não se arriscavam a continuar o trabalho com receio de inutilizar o negativo, tornando definitivamente irrealizável o relançamento da "Canção" que ficaria perdida para sempre. Mas as preocupações dos Portillo não eram de ordem metafísica, e procuravam afincadamente na terrena tecnologia a cura para aquele mal. E encontraram. Agora a explicação, voltando quinze anos atrás:
Fui testemunha do que vou relatar, uma vez que trabalhei na Canção como assistente de operador. O filme negativo de imagem que se utilizava era "Gaevert", uma marca belga de boa qualidade. Simplesmente a dada altura acabou aquele filme e para não interromper as filmagens, começou a usar-se outro até à chegada de nova remessa de Gaevert. Ora é geralmente sabido que um filme não é feito por ordem cronológica, seguindo o argumento passo a passo. E até uma cena em que um actor entra ou sai hoje por uma porta, pode só aparecer do outro lado, noutro cenário oito dias depois, ou até já ter lá entrado na semana anterior. Se bem se recordam do filme, lembro a cena em que a Beatriz, numa dependência da alfaiataria, discute com o Vasco, que sai, abre uma porta e entra na casa onde estão as custurerinhas pedindo-lhes apoio e até suplicando que lhe "escovem a Alma". Os dois cenários foram implantados no mesmo local com vários dias de intervalo. Isto quer dizer que o Vasco levou vários dias para franquear a porta e portanto bem pode ter sido filmado de um lado com um filme e do outro lado com outro. Se tivesse sido utilizado sempre o mesmo negativo nada de grave teria acontecido. Porém, intercalando planos de uma marca com outros de outra, na montagem final resultavam vários metros de um negativo ligados ao outro, repetindo-se esta situação ao longo de todo o Filme. Claro que estou a falar de filmes feitos à setenta anos. Hoje as coisas são diferentes. Naquele tempo fazia-se um negativo e dele se tiravam todas as cópias para exibição. O negativo era depois arquivado e assim ficaria até que mais copias fossem necessárias. Desta feita, só o foram quinze anos depois. Tanto tempo de clausura e sem os recursos actuais, causou alterações físicas como teria acontecido também a qualquer mortal nas mesma circunstâncias. E agora, após esta longa viagem pelo nascimento da Canção de Lisboa, voltemos a 1948. Depois de muitos testes de toda a sorte, os Portillos acharam o motivo de avaria: quando se metia o negativo na Positivadora para passar a imagem para positivo, (tal e qual como uma fotografia) tudo ia bem enquanto o filme era Gaever e só quando chegava um plano filmado com a outra película, esta encarquilhava tornando impossível a sua passagem entre os "pressores" que mantinham unidos o negativo e o positivo. Depois de muitas pestanas queimadas concluíram que o filme usado como recurso, tinha perdido mais humidade do que o Gaevert e por isso encarquilhava com o calor da máquina. O recurso foi banhar o filme para aumentar a humidade e portanto a flexibilidade do nitrato de que era feito o suporte da camada fotográfica. Sei que foi um trabalho exaustivo e de uma grande delicadeza para não deitar tudo a perder. Daí para diante não houve mais problemas porque foram feitas cópias "master" de que passaram a substituir o negativo original na feitura de cópias comerciais, conservando o negativo como objecto de Museu, com toda a justiça, diga-se. Ainda recentemente se fez outro lançamento da Canção, e portanto novas cópias se fizeram, mas não do negativo original. Este é o relato do que na realidade se passou, sem mistérios, sem intervenções sobrenaturais. Houve coincidência de acontecimentos, o que pode parecer estranho. Mas se quiserem insistir noutra explicação, então eu pergunto: porque foi possível à tecnologia bastante rudimentar ao tempo, vencer esta batalha? Afinal na vida tudo tem explicação. Terá?
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