quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Louca Ingenuidade

Louca ingenuidade - Em Janeiro de 1936 o vapor Lima da Cº Insulana aportou a Angra do Heroísmo, onde me encontrava preso desde 1934, e deixou o Secretário Geral do Partido Comunista Português, Bento Gonçalves e outro militante, José de Sousa. Aquela chegada de prisioneiros era o início da concentração da Primeira leva para o Tarrafal, onde Bento Gonçalves iria morrer como muitos outros camaradas. Na altura ainda não tínhamos ouvido falar no Tarrafal. Foi só na véspera da largada do navio para o Continente que me disseram que me preparsse para embarcar. Foi uma azáfama naquela caserna a fazer relatórios que eu deveria transportar clandestinamente para Lisboa. E tinha de ser por força eu, visto mais ninguém daquela caserna ir em Liberdade. Mas iria mesmo em Liberdade? Era provável que sim visto só me faltarem treze, ou vinte e oito dias para terminar a pena, conforme ela fosse contada a partir da data da prisão: 18 de Janeiro de 1934, ou a do julgamento, 5 de Fevereiro do mesmo ano. O optimismo com que estávamos a encarar a questão, era compreensível porque não conhecíamos ainda a sorte do Manuel Carvalho Rodrigues que havia sido preso ao meu lado, que ao meu lado foi julgado e, com dezoito anos, condenado a DEZ de degredo. Imaginemos que à chegada, descobriam a um de nós o material escrito. não me resta a menor dúvida de que seríamos todos recambiados para imos aumentar o número da primeira leva para o Tarrafal, e bem poderíamos ter a mesma sorte do meu camarada que cumpriu catorze anos. Repito: CATORZE, numa condenação de dez. Só voltei a vê-lo quando foi libertado aos trinta e dois anos, Parecia ter mais de quarenta. Almoçámos juntos. Mantinha alguns dos hábitos da prisão, como partir a carne em bocadinhos antes de começar a comer, como quando se não possuía mais do que uma colher. Pergunto-me agora, qual teria sido a decisão se nos fosse dado o poder de antecipar o Futuro ? certo é que não havia tempo para consultar as outras casernas,- o navio saía no dia seguinte – e não sabíamos se mais alguém iria ser libertado que pudesse levar, por ventura em melhores mãos do que as de um puto de dezanove anos, os relatórios que não deixariam certamente de elaborar. Não houve pois, voltas a dar. Teria de ser eu mesmo o "!correio". Diga-se em abono dos meus camaradas que ninguém me forçou, mas foram sim, as circunstâncias. Dei a minha concordância. Começou então uma azáfama a escrever relatórios dando conta das condições prisionais, bem como das nossas necessidades mais prementes. Dos linguados de papel Z4 em que eram escritos, os documentos eram copiados para papel de seda pelo Ribeiro que tinha uma letra muito redondinha, muito legível, tipo menino de Escola do meu tempo (de que eu era vergonhoso e negativo exemplo) e até hoje, devo confessá-lo, não mudei nada. O Ribeiro mal aflorava o papel de seda com a caneta, e com tal delicadeza o fazia que se tornava difícil acreditar que era obra das mãos rudes de um Pedreiro. Tornava-se agora preciso arranjar "veículos" para transporte das muitas folhas de papel de seda cobertas de boa caligrafia do Pedreiro Ribeiro. A dificuldade residia em conseguir dois pares de sapatos de um número que me servisse, mesmo que fosse maior. Acabaram por me oferecer generosamente dois pares um número abaixo do meu pé. Um para calçar, se pudesse, e outro para ir dentro do meu cesto de verga branco que os meus camaradas tinham crismado dois anos antes de “cesto dos Pombos”, recheado de literatura debaixo das palmilhas e dentro dos tacões arrancados, escavados, cheios e de novo colados e pregados no local de origem. Mas tudo isto não chegava para o produto de um dia e uma noite inteira de labor literário. Então descobriram duas escovas, uma de fato e outra de cabelo. Sujeitaram-nas a uma operação semelhante à dos saltos dos sapatos. Descolaram as coberturas e escavaram apenas os milímetros possíveis numa madeira tão fina. Veja-se agora a "louca ingenuidade" Num cesto, que não numa mala como seria de esperar, conviviam: um par de sapatos usados – uma camisa e umas cuecas mais velhas que os sapatos – uma escova de dentes - um ou dois livros - uma escova de fato e, no meio daquela miséria franciscana... o luxo asiático de uma escova de cabelo. Qualquer ser vivente e até talvez um polícia estranharia a discrepância. Na realidade não dava a bota com a perdigota. Parece-me ter chegado à conclusão de que fomos ainda menos espertos do que um polícia. Mas eu estou a ver tudo desde agora. Naquela situação, o desânimo, o quase desespero em que se encontravam homens de trinta quarenta e mais anos, chefes de família, condenados a dez e vinte anos de prisão, mais a multa de vinte contos ( nos anos trinta, era o preço de um automóvel) e ainda às "Medidas de Segurança" que, cumprida a pena ditada pelo tribunal, deixavam a libertação ao livre arbítrio da, então PVDE. De que é exemplo o á citado caso do Manuel Rodrigues.. Seja-me permitido, já que falo em Desespero, chamar a atenção para um escrito anterior intitulado "Arquivos da PIDE" Triste sina a minha, nunca consigo levar um escrito de princípio a fim sem me meter por caminhos diferentes do principal. Mas a penumbra da memória vai-se dissipando à medida que as recordações se vão atropelando e trazendo ao de cima o que já parecia definitivamente enterrado. E é quase uma pulsão que me leva a distrair-me do caminho que me propus percorrer e me faz entrar num outro que repentinamente se me depara. Voltando ao assunto principal. Não houve dificuldade alguma no embarque senão ter de andar quase a pé coxinho. A viajem correu normalmente, à parte o mau tempo. Quando no Funchal não fomos impedidos de ir a terra, ficamos quase certos de que íamos em Liberdade. Os sapatos não me permitiram grande passeio, nas ruas calcetadas com "calhau" posto de cutelo que era um horror. Mas sempre nos deu para respirar pela primeira vez em muito tempo, o Ar leve, puro e Livre do sufoco dos muros da prisão. Chegados a Lisboa, veio um esbirro buscar-nos e levou-nos a pé - bom augúrio - até às traseiras da P.V.D.E.. AÍ a minha preocupação – termo usado em substituição de medo - atingiu o máximo consentido para não me denunciar. Tudo correu bem. Mandou-nos embora em liberdade condicional com a obrigação de nos apresentarmos, todos os oito dias. Respirei de alívio só quando me assegurei de que ninguém me seguia. Passado algum tempo apareceu-me o "!contacto" que já era meu conhecido e despachei com grande júbilo, sapatos e escovas..... E os papéis chegaram ao seu destino... e eu também. Mas que foi uma "Louca Inconsciência", lá isso foi.