sexta-feira, março 31, 2006

Retalhos da vida de um militar

Vénia a FernandoNamora

Cidadela de Cascais 1937. Grupo de Artilharia Contra Aeronaves. Unidade dita de Elite, ou não albergasse no seu seio o General Carmona. Era uma Unidade Militar de pequeno efectivo – cerca de trezentos homens – em quatro Baterias. Eu era amanuense, e ouvia muitas conversas que os oficiais mantinham com os seus camaradas da Secretaria. A meio do ano comecei a ouvir falar num Oficial que vinha para a Unidade e de quem os outros traçavam os maiores encómios, do ponto de vista deles, militar portanto: competente, disciplinador, corajoso, não quero mentir (já lá vão tantos anos) mas teria andado na Guerra de Espanha. Tudo isto não era de molde a dar tranquilidade ao restrito número de camaradas meus, de confiança, a quem transmiti os receios que em certa medida também eram meus, apesar de, não andando "à linha", estar mais resguardado. Pelo menos eu assim julgava. Até que chegou o dito Oficial, e ficámos todos estarrecidos. Fardava como um Oficial Prussiano (conhecíamos pelos Jornais de Actualidades Cinematográficos ) o físico dava ajuda: naturalmente elegante, parecia ter nascido dentro do
uniforme. Barrete com a testeira levantada, quase na vertical e onde brilhavam as Armas de Artilharia. Pala muito curta, descida sobre os olhos, num dos quais faiscava um monóculo. Mas o que mais me saltou à vista – premonição, talvez – foram as botas altas elegantíssimas. Se parecia ter nascido dentro da farda, não sei que dizer daquele par de botas altas, negras, muito lustrosas que me ficaram até hoje na memória. Era o Tenente Carlos Kol d’Alvarenga. De uma família de Militares que se prolonga até hoje, e de que conheci em Luanda um Oficial (da FAP ou dos Paraquedistas). Muito cumpridor do Regulamento, o que só abonava em seu favor como militar, mas que não era o que os soldados mais desejavam Quando estava "de dia", era o pânico: "Ó Malta. Hoje está o Alvarenga! de Oficial de Dia!" Mas não acontecia nada de grave, a “malta” não facilitava. Fazia várias rondas às sentinelas. Já se sabia que não se podia fechar os olhos. Tão longo exórdio porquê ? jJustamente para chegar ao episódio que pretendo relatar, e que não teria o mínimo interesse sem antes se procurar traçar o retracto do protagonista.
A rotina do quartel começava pelo bárbaro costume da Alvorada às seis horas da madrugada. Seguiam-se a formatura, a chamada e a trôpega marcha até à casa de banho no"longínquo" lado-de–lá-da –Parada. Conforme já disse, eu era cabo amanuense, na Secretaria, cuja abertura
era às nove horas. Para quê então obrigar-me a uma madrugada para depois gastar três inúteis horas para "pegar ao trabalho."? Assim, quando o sargento de dia era simpático, e alguns eram-no, não só de sua nature (menos) mas porque eu lhes dactilografava documentos dos seus cursos (mais); se era simpático, dizia eu, deixava-me ficar deitado. Por volta das sete e meia oito horas, levantáva-me, fazia mais tranquila e detalhadamente as minhas abluções. Depois ia pedir a chave ao Oficial de dia e começava o meu dia de trabalho. Sabia de véspera qual o sargento de serviço e, quando era caso disso, fechava a Secretaria mas deixava só encostada a porta das traseiras por onde a formatura passaria na madrugada seguinte. À Alvorada, vestia as calças, punha o capote pelos ombros e escondia debaixo dele o cabeçalho (instrumento de tortura em que os soldados daquele tempo deitavamos a cabeça). Quando passava diante da porta encostada, esgueirava-me lá para dentro. Uma vez conseguido o mais difícil, juntava a secretária do Sargento Ajudante com a minha, deitava-me, cobria-me com o capote e dormia o sono da manhã mau grado a dureza da "almofada". Mas a fatalidade atingiu-me. Subitamente sou despertado paelo ruído da chave na porta da frente. Só podia ser o Oficial de Dia, o Tenente
Alvarenga. Não sei se continuei a dormir se foi uma síncope que me deu. De qualquer forma, consciente ou inconscientemente tomei a decisão certa: deixei-me ficar, e só não rezei porque não sabia. As duas salas, eram contíguas e não havia porta dividi-las. Os passos marciais chegaram a meio da primeira sala. Só pude ver umas elegantes botas altas, e "elas" viram-me a mim e estacaram, os passos marciais passaram a "pé-ante-pé". Continuei com a cabeça debaixo do capote e esperei angustiado pelo que haveria de vir. Passaram por mim sempre em bicos de pés foram ao armário dos impressos, serviram-se e refizeram o caminho anterior passando novamente por mim que estava pouco menos que gelado. Mal a porta da frente se fechou dei um salto e fugi porta fora . Quando fui capaz de voltar a pensar, perguntei a mim próprio: Como é que eu vou pedir a chave de uma casa onde estava a dormir abusivamente ? Mas como a situação não tinha remédio. Ajustei bem o uniforme de trabalho, pus o barrete "como eles gostavam", engraxei as botas e endireitei as grevas "como eles gostavam" e finalmente, diante do enorme espelho da Caserna, ensaiei uma continência bem marcada, uma bater de calcanhares bem vigoroso e, o mais difícil, falar com voz forte e decidida. Tudo ao gosto do tenente Alvarenga. E lá fui: - porta do Gabinete.- Paragem para tomar fõlego. Continência e grande calcanheirada simultâneas; saíram bem. Voz firme quanto pude:
"MEU TENENTE DÁ LICENÇA?" Entra. "Venho buscar a chave da Secretaria, meu Tenente." Deu-me a chave que recebi numa mão pouco firme. Saída com o mesmo cerimonial da entrada . Tudo isto me parecia surrial. Assim que pude conseguir a tranquilidade que me permitisse pensar; procurei perceber aquilo que, se me contassem, teria alguma dificuldade em acreditar. O que é que se teria passado na cabeça daquele Militar rigoroso e disciplinador ? Vou procurar imaginar o que o Tenente pensou:"Tenho a chave na minha mão, a Secretaria está fechada e
esta gajo vem para aqui dormir. Se o apanho não passa sem uma grande "porrada". Mas se não me vir não sabe que eu o vi. Vamos lá passar devagarinho". Enquanto procurei sondar o que se teria passado naquela cabeça de militar cheguei à seguinte conclusão: não foi na cabeça do Tenente de Artilharia Carlos Kol de Alvarenga com o seu uniforme à Prusasiana que tudo se terá passado. Foi no CORAÇÃO.


Adenda:

Este é o retrato do coronel Alvarenga, que me atrevi a retirar do blog de um dos seus netos.

10 Comments:

Blogger Carlos Alvarenga said...

Foi com grande emoção e orgulho que li o retrato que "postou" do Tenente Avarenga.
Confesso que foi dos relatos mais emocionados que ouvi em relação ao meu AVÔ!
Com efeito eu nunca o conheci em vida, portanto a imagem que construo é com os relatos que ouço, e este é estruturante!
Em nome dos descendentes do Avô, MUITO OBRIGADO.

11:41 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Muito Obrigada pelo relato!
Também eu nao cheguei a conhecer o avô Carlos e a imagem que tenho, baseada em relatos e fotografias, é a de um militar elegante e rígido. O relato engracado da sua parte humana nao me surpreende, pois se conhecendo os descendentes, se vê que o Avô afinal nao podia ser assim tao "frio"...

3:46 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não esperava, este retalho da vida do meu avô!
Era mesmo assim! Nós, os netos, os que conhecemos o avô Carlos, nunca sabíamos se era hora de fugir ou ficar. E há um sem fim de memórias em muitos cantinhos guardados e, desta ou de outras formas, por vezes inesperadamente, recordados.
Muito obrigada Fernando Namora,
Muito obrigada João Silva.

Maria do Ó Alvarenga Costa

5:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É de facto um relato emocionante.
Principalmente para quem passou a vida a escutar histórias, semelhantes a estas, de um militar que era o nosso avô.
obrigado pelo momento
bartolomeu alvarenga

6:15 da tarde  
Blogger Carlos Alvarenga said...

Deixo aqui o comentário que vos foi endereçado via "Angolano´s":

"A Dª leonor Alvarenga, Dª Maria do Ó
Avarenga e Sr. Bartolumeu Alvarenga:
estou realmente comovido com os vossos
tão simpáticos comentários ao meu escrito, e sinto-me feliz por vos ter dado, ainda que involuntariamente, a alegria de recordarem mais uma vez o
AVÔ. Obrigado. João Silva"

Ainda que certamente sem imaginar, o Avô, por intermédio do CORAÇÃO, reuniu no cyberespaço pelo menos duas gerações de netos!

Ao Avô e ao João Silva, obrigado.

7:43 da tarde  
Blogger Carlos Alvarenga said...

Quem quiser "conhecer" o avô basta consultar www.alvarenga1.blogspot.com

9:42 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Conheci-o bem. Era assim mesmo.
Com os netos, todos, não só alguns, é que se sentia bem. As crianças têm honra, qualidade que mais prezava.

Já mais velho, quando cumpri seviço militar em Cascais, também en atiaérea, tive ocasião de beficiar do prestigio que o Cor. Alvarenga ainda tinha, mais de dez anos após a sua morte.

Já agora, nunca o vi de monóculo. Tudo o resto retrata-o bem, como pessoa e como militar.

Francisco Alvarenga

10:40 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Gostei imenso de ler os comentários dos netos acerca do meu PAI. Bem os merece pelo genes que por cá deixou!

Quer agradecer ao Sr. JOÃO SILVA que nos proporcionou estes deliciosos momentos, e como o Cajó disse pode vê-lo em www.alvarenga1.blogspot.com

2:51 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

folgo em reconhecer que o meu tio avô, irmão de meu avô Mário, é mais um expoente que dignificou e honrou a nossa família.
mais uma vez obrigado, por parte deste pequeno ramo..

1:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Este relato é o que me lembro do meu avô
Muito obrigado
Carlota Alvarenga

9:07 da tarde  

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