Domingos
Chamava-se Domingos João de Almeida. A prosa que vai seguir-se não terá - não tem – qualquer curiosidade ou motivo de especial interesse. Será porventura, até maçadora; não importa, escrevo-a apenas para duas pessoas: para mim, pelo gosto que me dá o recordar, e para o Domingos, que já a não poderá ler. É, pretende ser, não uma homenagem, termo ridiculamente pomposo neste, como em tantos outros casos. É, sim, falar de um amigo que deixei de ver há cerca de trinta anos e que, hoje, teria mais de cem. Era o contínuo do Produtor de Cinema Ricardo Malheiro que me contratara para filmar uma série de documentários em Angola no longínquo ano de 1950 do Século passado. Conheci o Domingos à porta do Hotel Turismo em Luanda, quando esperava que nós saíssemos. O Domingos era preto. Íamos começar os documentário dirigidos pelo meu Camarada Carlos Marques, e o Produtor colocou o Domingos ao nosso dispor. Assim, constituíamos uma equipe de três com o Domingos a transportar o material , nada que eu não tivesse feito durante largos anos, até ser Operador. Poucos meses depois o Produtor e o Realizador regressaram a Lisboa deixando-me só com o Domingos. Eu com tão pouco tempo de África e com uma enorme curiosidade e surpresa pelo que via e ouvia, travava com o Domingos grandes conversas pelas quais pude perceber que o Domingos tinha bastante mais cultura do que os seus patrícios. Foi de uma ajuda preciosa quando nos embrenhámos nos complicados Musseques , para um novato, um pouco inquietantes. Foi aí que pude confirmar o que já tinha observado à porta do Hotel. Aproximavam-se dele outros homens, pretos como ele, numa atitude reverente, meio curvados, que lhe apertavam as mãos e se iam embora sem dizer palavra . Quando o inquiri sobre isso respondeu-me que era por ser mais velho. Anos mais tarde soube que em Angola, e noutros pontos de África se respeitava muito a velhice, a ponto de se chamar “o Mais Velho” àquele que , mesmo não o sendo, era o que sabia mais. Mas esta resposta não me satisfez pois não vi mais ninguém a fazer cumprimentos a torto e a direito. Aí pude, meses depois, fazer uma observação que julgo muito importante. Vivi em Angola 30 anos. Durante todo este longo tempo, os "pretos eram pretos,” sem sentido pejorativo . Quem queria insultar, dizia: “ Negro, Seu negro !!” Em breve se estabeleceu entre nós uma relação de confiança que nos permitia fazer perguntas de caracter pessoal. Assim soube, porque ele me disse,, que tinha trabalhado, na sua qualidade de alfaiate, com o Taxidermista do Museu de Angola , palavra nova para mim que tive de consultar o Dicionário porque, - é com vergonha que o confesso - não quis mostrar ignorância perante o ajudante preto. Eu, com a Mulher e dois filhos já em Luanda, habitámos provisoriamente numa boa casa da Produção. Essa casa tinha uma grande zona descoberta e com uns bons anexos.O Domingos tinha a família: mulher e dois filhos pequenos a cerca de quatrocentos quilómetros de Luanda, e pediu-me que o deixasse instalar-se ali com eles. Assim foi, e os garotos eram sensivelmente da idade dos meus. Devo esclarecer que o Domingos não era meu criado nem sequer pago por mim, no entanto ajudava a minha mulher a cuidar da casa, e tinha imensa paciência com os meus filhos, sobretudo com o mais novo que tinha pouco menos de dois anos. Certo dia em que o mais novo deveria ir a um Posto médico para fazer uma vacina, levei-o a ele e ao Domingos, deixei-os no Posto, dei dinheiro para o Maximbombo (autocarro) do regresso, e fui trabalhar. Ao almoço o meu filho estava com uma conversa muito complicada onde me pareceu ouvir: "carro taxi". Perguntei "o que é isso de taxi" Foi então que eu subi mais um degrau na aprendizagem dos costumes, daquele Povo, das suas sensibilidades, crenças e traços culturais. Já tinha percebido que o Domingos gozava entre os seus, de um estatuto espcial. E escutei da parte dele a justificação do regresso de taxi. Disse ele: "eu não me importo de ajudar a Senhora, lavar a loiça, cuidar dos meninos. Mas lá fóra, se os outros pretos me veem com o menino ao colo chamam-me "lambão" e riem-se de mim".Não me foi difícil compreender a sua razão. Passram-se vários meses em que contei que a sua ajuda, até que de Lisboa veio a ordem para deixar a casa e dispensar o Domingos. Como não me era possível suportar o ordenado dele, não tive outro remédio, e o Domingos partiu com a famíla para a sua terra, "além Malange" se bem me recordo, a mais de quatrocentos quilómetros de Luanda. Passada uma meia duzia de anos fui abordado na Praia por dois garotos que me disseram ser os filhos do Domingos e estavam a estudar em Luanda. Deram-me novas do Pai, daquele género : "o pai está bom". Outros anos passaram até que de dentro de um guichet do Hospital Maria Pia, uma cabeça me espreita, chama-me pelo nome me diz: "eu sou o Clemente, filho do Domingos" e foi tudo. Passam-se muitos mais anos, estáva-se nos primeiros meses de 1975, quando uma noite me entra em casa, um Capitão das FAPLA que me pergunta: "já não se lembra de mim ?" ante a minha cara de espantado acrescenta: "mas do meu Pai lembra-se com certeza" Foi então que vi o Domingos. Foi um momento de grande emoção de nós dois e da minha Mulher. Foi depois um desfiar de recordações com vinte e cinco anos. O Domingos estava velho como seria de esperar, mas seco e desempenado como sempre o conheci. Disse-me que vivia no Bom Jesus, na margem direita do Quanza onde tinha um pequeno negócio. Despedimo-nos como quem não espera tornar a ver-se. E os anos correram. Mais quatro se passaram,e por razões de familia, resolvi com grande desgosto, deixar Angola. Lembrei-me então do Domingos, como estaria ele ? "estaria ainda" ? Resolvi ir despedir-me. Peguei no carro com a munha Mulher e um Grande Amigo que lá deixei e lá morreu passados poucos anos. Rumámos ao Bom Jesus. Na povoação foram um tanto reticentes em dar a morada do Domingos. Estava-se numa época ainda não completamente pacificada, e eles não nos conheciam. Enfim depois de muitos rodeios deram-nos a indicação da casa do Domingos. Com alguma dificuldade a encontrámos. Era uma pequena construção completamente isolada no meio do mato. A loja estava fechada e tudo silencioso. Bati à poerta de casa e algum tempo depois apareceu-me o Domingos muito debilitado. Estava doente, por isso estava a loja fechada. Enfim, foi um encontro breve e comovido. Ele e o Laranjeira, o Amigo que me acompanhava, trocaram endereços. Anos mais tarde este Amigo mandou-me notícias do Domingos. Agora só resta a recordação duma boa amizade e a fotografia que se inclui neste relato de um tempo que vem dos trinta e três anos e se prolongou até aos noventa, e agora... esperemos.
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