terça-feira, julho 04, 2006

Hotéis do Mato

O episódio que vou relatar é tão inacreditável que só alguém que tenha frequentado este tipo de “hotéis” depois ter conhecido hotéis propriamente ditos, e não me refiro a cinco estrelas, mas a simples hotéis, é que se poderá rever numa situação como a deste relato. Tudo começou numa viajem de combóio de Nova Lisboa para Teixeira de Sousa na fronteira Leste de Angola, face à cidade de Dilolo no – ao tempo Congo Belga - . Chegado a T.de Sousa, dirigi-me ao Hotel e o hoteleiro começou por me perguntar: “é topógrafo?” (viu o tripé da máquina de cinema) – “não sou de cinema” – “ e que fitas é que traz?” (confundira-me com os homens do cinema ambulante que andavam pelo mato a exibir filmes de fraca qualidade) - respondi que não vinha mostrar filmes mas faze-los, Mas o homem não desistia: “então quem é que lhe paga?” - “” olhe; a si pago-lhe eu e quanto a mim, não se preocupe”. – “está bem, isto é só a gente a conversar”, mas agora vamos aqui fazer o registo”. Abriu em cima do balcão um livro enorme como eu já não via há muito tempo nas pensões manhosas da província, estendeu-se sobre o balcão, pegou num lápis de tinta, molhou-o na boca, começou o interrogatório e foi escrevendo laboriosamente. Eu trazia uma credencial de Luanda para o Administrador do Concelho que me iria proporcionar o transporte para Cazombo onde teria de filmar a Leprosaria . Por isso perguntei ao hoteleiro onde era a casa do Sr. Administrador. “Mas hoje é sábado” respondeu-me o homem – “não foi isso que eu perguntei” – “bem sei, mas hoje é sábado e ele não o vai receber” eu já estava pelos cabelos e já com uma certa agressividade na voz , insisti que me dissesse a morada do Administrador, o que finalmente consegui. Lá fui, falei com o Administrador e acertei a partida para o dia seguinte à tarde. (mas disso falarei mais à frente) por agora atenhamo-nos ao tema Hotéis que foi isso que aqui me trouxe. Pois voltei ao hotel onde o homem não deixou de inquirir se o Administrador me tinha recebido ou não. Ao jantar entrei na sala que era muito grande e tosca, como eu já esperava e dirigi-me para o fundo onde avistara um lavatório. Reparei que quando entrei as pessoas já sentadas às mesas olharam todas para mim,, No fundo não seria de admirar; sempre era um desconhecido, (quem será o gajo?), foi isso que eu pensei. Só depois vi o quanto estava enganado! O lavatório compunha-se de uma armação de madeira com uma bacia de esmalte. Até aí nada que eu não tivesse visto já. O que era inédito é que ao lado do jarro da água não havia um balde para despejar a água utilizada. Não senhor; aquela bacia ostentava o luxo de uma válvula!. Portando, depois de lavar as mão abri a dita válvula e... senti os joelhos todos salpicados de água e reparei que os circunstantes desviavam a vista e continham uns frouxos de riso. Olhei para baixo e vi o realmente inacreditável. Vou procurar descrever: a bacia era daquelas com um tubo de zinco a acabar em bico ( em casa de meus pais havia uma assim ), só que aquele tubo terminava a meio, não acabando portanto em bico; e em baixo não havia balde nenhum. O que havia era um tubo de chumbo que vindo do chão subia até meio caminho; mas era curto e o engenhoso hoteleiro tinha-lhe enfiado o gargalo de uma garrafa à qual tinha partido o fundo; chegava mais acima mas era pouco, continuava a não chegar.
. Por isso o homem cortou o fundo a uma lata de meio quilo de
manteiga e enfiou-a na garrafa. Alargou o “funil”, Assim quase chegava, isto é, chegava para a água bater nos bordos da lata e esparrinhar para os joelhos do incauto hóspede.
Para gáudio dos comensais que bem precisavam de alguma coisa que os ressarcisse das ementas que lhes serviam. Quando o hoteleiro veio à mesa perguntar-me o que queria beber pedi-lhe uma laranjada gelada. O homem trouxe-me uma garrafa que, gentilmente despejou no copo. Era “groselha” uma coisa que punha nódoas na roupa que nunca mais saiam. “Ò homem eu pedi laranjada, não pedi isto!” – “é a mesma coisa.”. Resignei-me claro, já eram muitas naquela dia; mas não foi a última. Pego no copo para beber o primeiro trago... não estava morna, o morno em África é quente. Chamei o homem e reclamei; “isto não está gelado”.- “Não tenho geladas” disse ele. Mas Você tirou isto da geleira, bolas!” –“ A geleira está avariada “. “ Então para que é que tem lá as garrafas? perguntei. “ Sempre estão arrumadas” Isto foi o fim; quebrou-se a minha última resistência. Como não consegui comer os bocadões de toucinho que tinha visto tirar de dentro de um porco “crucificado” no pátio por detrás da cozinha e cujos gritos tinha ouvido um bocado antes, levantei-me da mesa e fui-me deitar. No dia seguinte parti para Cazombo. Esta viajem merece um relato que farei mais tarde . Por agora fico por aqui.. Afinal não fico nada por aqui: vou incluir a viajem até Cazombo e depois o regresso a Nova Lisboa. Pois foi assim: o único transporte possível para aquele dia – Domingo, já era Domingo –seria um camião carregado que sairia ao fim da tarde para Cazombo, (170 quilómetros, se bem me lembro). Porque tinha pressa em fazer aquele trabalho, aceitei sem vacilar e lá me meti no carro; mas ia muito mal instalado porque além do motorista ia outra pessoa corpulenta, e eu ainda por cima ia no meio. Isto era já de noite e como não me conseguia acomodar pedi ao motorista que me deixasse ir para cima da carga, Ele não estava muito de acordo com medo de que eu caísse; mas lá fomos ver a carga que ia coberta com um encerado bem amarrado com cordas. Lá me encaixei numa depressão do encerado e meti as pernas e um braço sob as cordas e o homem lá sossegou. Devo dizer que eu sempre tive muita facilidade em dormir em quaisquer situações e acabei por fazer uma razoável viagem (não choveu!). Chegamos de manhã muito cedo ao Rio Zambeze que atravessamos na jangada que se ia virando com o peso do camião, mas lá passamos para o outro lado. Em Cazombo o motorista deixou-me à porta do Administrador; o criado disse-me que o Sr. Administrador ainda estava deitado e eu sentei-me na sala à espera dele e... adormeci, Quando acordei já o Administrador Burnay tinha saído deixando-me a dormir, pois percebeu que eu teria viajado toda a noite. Procurei-o na Administração pedi-lhe desculpa pela invasão. Ele era uma pessoa extremamente simpática como tive ocasião de verificar ao longo de vários anos . Levou-me à Leprosaria e apresentou-me ao Director que era o Dr. Eduardo Ricou (Pai da Tété, a Mulher Palhaço dos tempos actuais). Também este Dr. Ricou foi muito simpático e proporcionou-me bom apoio para a conclusão do trabalho, que embora doloroso de ver correu bem, e dois ou três dias depois o Administrador mandou um Chefe de Posto levar-me de volta a Teixeira de Sousa. Como a estrada por onde eu tinha vindo era péssima (todas em Angola o eram naquele tempo, anos 50, o Chefe de Posto levou-me pelo Congo Belga até Dilolo onde jantamos e atravessamos novamente a fronteira para Teixeira de Sousa. Refiro este trajecto por Dilolo porque tem importância para o que virá a seguir. Lá fui parar ao mesmo “hotel” ( não havia outro ). E no dia seguinte por volta do meio dia tinha combóio para Nova Lisboa. Como tinha bilhete de ida e volta descuidei-me com o dinheiro e cheguei à triste conclusão que estava nas lonas. É que a viajem demorava aquela tarde toda, a noite toda e só chegaríamos a Nova Lisboa por volta das 8.oo horas da noite do dia seguinte. Mas o dinheiro era pouco e eu tinha duas opções. 1ª: comprava cama, falhava o jantar daquele dia, dispensava o pequeno almoço do dia seguinte mas almoçava, ou, 2ª opção: - jantava naquele dia e almoçava no dia seguinte mas não comprava cama e dormia em más condições depois da viajem no camião e das dormidas no tal “hotel” que também não se recomendavam.- .Pensei então: não janto, deito-me cedo e como costumo dormir bem , levanto-me o mais tarde possível, almoço e depois janto já em Nova Lisboa. E assim optei pela primeira hipótese. Mas, assim que tomei esta decisão e entrei no combóio comecei logo a sentir fome. Peguei num livro policial que comprara em Teixeira de Sousa ( imprudência causadora do dilema presente ), tentei ler mas só sentia era o estômago a reclamar. Aliás antes de tempo pois o meio da tarde não era para tanta aflição visto que tinha almoçado. Procurei várias maneiras para me distrair; mas como ia só no compartimento não tinha grandes chances. Então, para matar o tempo resolvi fazer a barba, não a tinha feito de manhã , coisa rara, mesmo no mato. Abro a mala para tirar a gilete e que vêem os meus olhos extasiados: UMA ENORME BARRA DE CHOCOLATE que tinha comprado em Dilolo para levar aos meus filhos que me esperavam em Nova Lisboa. Lembram-se de eu dizer que era importante falar no percurso pelo Congo Belga? Pois aqui está a justificação. “Coitadinhas das crianças, disse o meu coração”. “ É pá, reclamou o meu estômago; então e eu!?” e a minha cabeça botou sentença:” em Nova Lisboa compras outra”. “Não é a mesma coisa, isto seria uma lembrança da viajem: vêem como o paisinho não se esqueceu de Vocês”! entretanto já tinha desembrulhado o chocolate e dado uma dentadinha. E lá fui tenteando a fome, que curiosamente, desde o aparecimento do chocolate, já não apertava tanto. E depois ele era tão GRANDE!!! que ao fim e ao cabo tudo se resolveu a contento do estômago, do meu coração, da minha consciência e da alegria das crianças. A Nova Lisboa ainda chegou mais de metade, e como lhes contei o sucedido até se riram e ainda repartiram comigo.
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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Fotos do Cazombo? Há por aí uma alma caridosa que mas envie para nnp@sapo.pt
Muito obrigado.
Estive lá de 72 a 73.

10:57 da tarde  

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