quarta-feira, agosto 02, 2006

O nossAlferes Palheta

1937.Assentei praça no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves, Unidade considerada de Elite aquartelada na Cidadela de Cascais, residência do Chefe de Estado, General Carmona. Tudo nobreza e distinção. Mas a soldadesca,essa é que não ia em nobrezas e distinções. Ninguém gostava da Tropa: recenseados, convocados,inspeccionados ( nus perante gente vestida )apurados,incorporados e,finalmente enviados para os mais variados destinos,perto ou longe das nossas terras de origem ou de residência. Mas o recrutamento fora feito entre o que havia no "Mercado" e, na década de trinta o analfabetismo era, o que hoje é difícil imaginar. Houve mesmo umas acções de propaganda visando incentivar os jovens a alistar-se como voluntários, estes pelo menos,saberiam ler.Mas para nós,os "involuntários", era difícil compreender que uns tontinhos tivessem vindo meter-se de motu próprio naquele meio opressivo onde nós só forçados ingressáramos. Aliás, todos irmanados pelo mesmo sentimento de azedume por aquela entrada compulsiva no Glorioso Exército Português, estendíamos esse sentimento até aos voluntários.Esta animosidade, não tinha justificação, mas tinha uma explicação plausível. Os voluntários tinham os números, mais baixos,e na tropa antiguidade é um posto, formavam à direita e,. . . usavam polainas!!!. Porque eram ou viriam a ser, condutores auto. Assim, cheios de empáfia,as exibiam bem engraxadas e,ainda que não muito bem talhadas,eram mais agradáveis à vista e muito mais práticas do que aqueles metros de fazenda das "grevas" que nós "serventes" mal podíamos enrolar em volta das nossas juvenis e esbeltas pernas que,"sádico," o grande espelho da caserna nos devolvia,transformadas em grosseiras trancas. Vejamos até onde pode levar a vaidade, Mesmo correndo o risco de um possível castigo, alguns "serventes." punham de lado o desprezo pelos "lateiros" e alugavam-lhes as polainas. Os donos não poderiam sair do quartel; mas saiam eles levando-as embrulhadas,e colocando-as já longe de Cascais.E
nós,com "fumaças" de seres superiores, olhando com pueril desdém para outros que, soubemo-lo mais tarde, tinham boas e até dramáticas razões, de onde tirar a coragem para se alistar voluntariamente na tropa que ao fim e ao cabo, tanto custou a suportar a nós como a eles. Naturalmente, apareceram grupos aleatoriamente formados, mas não tanto que albergassem conjuntamente a “nós e eles". Felizmente que os serviços, as tarefas, os esforços e as chatices eram, também aleatoriamente, distribuídos a “nós” e a “eles,” acabando por fim com tão pueril discriminação. Mas enquanto durou, durou. E foi durante este período que se deu o acontecimento que originou a lenda do “Alferes Palheta”. O meu grupo integrando dois serralheiros//espingardeiros da Fábrica de Braço de Prata, Jaime, o “Pianinho”, e o Henrique´ dito “Pavão”, o João da “Tobis,” todos de Alfama, o Galriça, um castiço do Bairro da Ajuda, “o Barbeiro,”, e finalmente o Aprígio, a que chamávamos “Marília” em homenagem à irmã. Bem se perceberá porquê, e o “Cascais", ambos, de . . .Cascais. Numa (quase) fatídica tarde, estávamos comendo uns gostosos torresmos na praia da Fortaleza , uma praínha quase privativa do Quartel , e a que se tinha acesso pela Porta do Fosso, mas que nos era interdita . De súbito, fecha-se a porta , deixando-nos “presos-cá-fora” o que seria certamente punido. Os nossos camaradas que se encontravam sobre a muralha deram-nos a aterradora notícia: o Oficial de serviço ia mandar tocar a formar e quem faltasse : porrada pela certa. Já imaginávamos o Tenente e o sargento, este certamente o autor da armadilha, à Porta de Armas de canhenho e caneta em punho à espera do nosso grupo vindo da rua, coisa extremamente grave. A nossa preocupação sobre o que nos iria acontecer à entrada não tinha medida. Nisto, o Seis da minha Bateria, o Américo, chamado Palheta dado o efeito do nariz na cara magra daquele "lateiro," um paz d’Alma comprido desengonçado por quem não se dava nada, teve um rasgo de energia e decisão: trepou para os ombros de um camarada, conseguiu agarrar um bordo da muralha, outros de cima o puxaram e ele estava a salvo. Bastaria uma pequena corrida até à formatura.. Mas não; aquela figura apagada e triste, tirou o cinturão, ligou-o ao de outro e ambos resgataram uma a uma aquelas mesmas orgulhosas criaturas que alguns momentos antes nem teriam dado pela sua existência. Não houve tempo para agradecimentos, sequer para o reconhecimento da rapidez de acção e, sobretudo da grandeza d’Alma daquele . ."lateiro". Recebi, recebemos todos uma lição de solidariedade humana, se quiserem : de Amor ao próximo . O sentimento que percorria toda formatura era de gozo pelas tristes figuras do sargento e do oficial esperando em vão pelos "soldados desconhecidos," e acabando por vir embora de orelhas murchas. Aqui começou nossa amizade e gratidão para com o "Palheta." Depois do toque da Ordem, saímos e fomos confirmar a entrada do "Palheta" para o nosso grupo , na Tasca do Marinheiro com direito a fado pelo "Pavão" e muitos copos por conta da casa .. Foi aí que reparamos que o Américo trazia nos ombros a insígnia da especialidade, um automóvel. Mas era um descapotável muito estreito e comprido, que ele trazia brilhante de "Solarina" mais parecendo um galão de alferes. Então nós, por unanimidade, o promovemos a "Alferes Palheta." Foi com a convivência, com a mútua confiança, entretanto selada, que ele nos confidenciou o porquê da sua entrada na tropa dois anos mais cedo como voluntário. _- Vivia com a Mãe, velha e doente, sem outro amparo além dele.. Para lhe dar uma vida melhor, pensou ir para chaufeur de taxi, o que na altura era uma boa profissão. Porém tudo ficava muito caro, com as lições, o exame e finalmente a ambicionada carta. Daí o recurso à carta militar que depois se poderia trocar pela civil, por "dez reis" de mel coado. Todavia este desejo , e forte necessidade, não estavam a ser satisfeitos pela realidade.. O nosso amigo era uma negação para o volante, e o pior é que não se dava conta disso. Ele, como todos os outros aspirantes a condutores, tinha um carro distribuído para efeitos de limpeza e conservação. O dele era um dos enormes e antigos camiões que raras vezes saiam. Mas um dia mandaram-no com mais uns homens a uma pedreira para ao lados da Serra de Sintra. No regresso, já com o carro muito mais pesado, ao descrever uma curva derrubou um sinal de transito de cimento. Limparam os vestígios de pó de cimento e como o carro não sofrera nada, vieram "cantando e rindo" para o Quartel e fecharam-se em copas.. Passado algum tempo chegou à Secretaria um Oficio da C.M de Cascais,, a que eu tive acesso , reclamando o arranjo dum poste, que, supostamente teria sido derrubado por um dos nossos camiões. Dizso fiz umi rigoroso relatório ao Noss'Alferes Palheta afim de se precaver contra maus ventos que aí viriam. Não vieram; antes assim.Lá foi um Oficial ao Parque verificar os carros,, levando-me a tiracolo para ir registando o que ele dissesse.. Como não viu nada, encerraram o caso, e mandaram reerguer o poste e tudo morreu ali.Se desta vez o camarada se salvou, na segunda não conseguiu tirar o corpo para fora da lide, e foi colhido. A Unidde ia sair em força , perante o Comandante Coronel Pereira Coutinho. Cada um dos três Comandantes de Bateria ocupava um carro, muito pequeno descapotável de forma que seguiriam de pé em continência enquanto a coluna desfilava frente ao Comandante.. Quando o Comandante da Coluna ordena "em frente," fá-lo com um gesto largo do braço direito em arco por cima do ombro, como na cavalaria, ficando hirto apontando em frente. Todos os carros arrancam ao mesmo tempo.. Arrancaram sim, mas o carro da frente arrancou. . . para trás. O Capitão ficou sentado no banco enquanto o condutor, o "Alferes Palheta" fazia esforços para arrancar, e seguir em frente. Eu, não seguia com a Formação e foi da porta de Secretaria que assisti a tudo, até ali. Porque me retirei para não ver mais. Estava a poucos dias de passar à disponibilidade Alguns dos condutores já tinham feito exame e esperavam o resultado com a natural ansiedade.. Um de entre eles, um cabo já com alguns anos de tropa, não me largava a porta da Secretaria,, até que me viu a dactilografar algo que julgou ser a relação dos resultados. E não se enganava,. Chamou-me e perguntou: "então pá, fiquei aprovado?" Fiquei perplexo: "então tu vais de encontro à janela do Barbeiro de Paço d’Arcos e fazes uma porta, e ainda perguntas ?" – "mas também foi só isso" respondeu-me o infeliz. O G.AC.A não teve outro remédio se não mandar arranjar a janela, mas o barbeiro aproveitou a deixa e quis antes uma porta em vez da falecida janela. . Chegou o momento, Março de 1938, em que me despedi de Cascais, uma linda e tranquila Vila de Pescadores. (naqule tempo) Ainda ficaram alguns dos que já tinham feito exame e outros à espera de vez para o fazer. Entre estes o Américo. As nossas vidas tomaram rumos diferentes e não nos tornamos a ver. Entretanto fui para Angola. e numa rápida deslocação a Lisboa, já nos anos cinquenta, entrei, por um motivo de que me não recordo, nos tristes corredores do Hospital de São José. Na obscuridade vejo uma cara conhecida, era o meu camarada "Alferes Palheta," de rosto avelhentado, vestia de ganga, e empunhava uma esfregona.. Era "servente" !.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que memória, meu caro!
Parabéns!
E continue a deliciar-nos com estas histórias.

8:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

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